Zé Celso buscava revolucionar o Brasil pela força do teatro
Contra os limites da fictícia individualidade pequeno-burguesa, a vontade do encenador submetia selvagemente o público arrebatando-o com espetáculos fascinantes
✅ Receba as notícias do Brasil 247 e da TV 247 no canal do Brasil 247 e na comunidade 247 no WhatsApp.
Zé Celso Martinez Corrêa trabalhava na criação do espetáculo baseado no livro A Queda do Céu, de Davi Kopenawa e Bruce Albers, para transcriar a mitologia yanomami no espaço do teatro Oficina.
Aos 86 anos, o diretor estava absorvido pelo trabalho no apartamento no bairro do Paraíso, onde morava, quando tudo pegou fogo.
O mais universal dos artistas brasileiros montou seu terreiro teatral como um foco guerrilheiro amoroso entranhado no bairro do Bixiga, de cujo solo árido e devastado pela floresta de concreto o artista teimava em haurir sua fé cênica.
Ali onde o massacre urbano desfigurava toda referência humana, Zé Celso implantou a mais visceral usina de teatro. Um experimento de mais de seis décadas cuja forma e sentido foram mudando sempre até assumir uma feição política particular.
Como Oswald de Andrade, uma de suas referências, morador do Bixiga no final da vida, Zé Celso abriu-se para devorar todas as influências, consolidando a sua maior convicção, a de que o teatro era a maior de todas as coisas que existem, a origem e o fim de tudo, capaz de vencer as barreiras do medo, da moral, da religião, da identidade individual e do conservadorismo.
A demolição da ilusão teatral da quarta parede, a da separação entre palco e plateia, que foi o caminho do Oficina nos anos 60, virou a orientação seguida primeiro por Flavio Império e depois por Lina Bo Bardi para conceber o revolucionário teatro-passarela da rua Jaceguai.
O fim da quarta parede era apenas a expressão de uma ambição muito estética e ética maior.
Segundo esse princípio fundador, Zé Celso queria que o teatro fosse quebrando todos os limites para encarnar uma força real capaz de se fundir com tudo e se tornar ele mesmo o fundamento da própria vida como ela é.
Queria que suas peças se transfornassem em movimento, passeata, manifesto para mover uma força em que arte e vida fossem uma coisa só, para exterminar a ordem burguesa, a mentalidade passiva e conservadora.
Esse teatro ousaria sair às ruas para tomar concretamente o poder político e comandar o próprio Estado segundo novos valores, que ele denominou a tragicomédiaorgia, associando significados carnavalizados bem brasileiros à selvageria do teatro grego ancestral.
Ele invocava o poder do sacrifício presente também num cristianismo primitivo que trouxe de Araraquara onde nasceu.
Assim, Zé Celso viveu para satisfazer a ânsia de levar o coro deste seu teatro, gestado no "sertão" do Bixiga, nutrido pelo espírito do vizinho Teatro Brasileiro de Comédia e por Cacilda Becker, ao poder político real, em São Paulo, Brasília, Moscou ou Berlim.
Sua convicção era de, num transe teatral tão poderoso e idêntico aos transes e reviravoltas políticas e dramáticas que presenciamos todos os dias na história, quebrar todas as barreiras artisticas e físicas. Nesse mundo, em que tudo se funde, talvez o próprio céu em queda se fundiria à terra.
Haveria uma ciclópica recriação do universo, como a descrita pelo próprio Hesíodo na Teogonia grega. Zé Celso habitava essas dimensões e as encenava lindamente, na expressão de uma infinita vontade de poder, para a qual encontrou abrigo na obra do filósofo Friedrich Nietzsche.
Deste extraiu a ambição de destruir e fundir tudo, teatro, coro, filosofía, música, tragédia ancestral, ritual de estraçalhamento purificador convertendo fiéis e infiéis para um local além do bem e do mal, onde o poder e o capitalismo são a ascensão dos bandidos ao comando do estado.
Contra os limites da fictícia individualidade pequeno-burguesa, a vontade do encenador submetia selvagemente o público arrebatando-o com espetáculos fascinantes, excessivos, pungentes, evocativos onde tudo podia aparecer com crueza e poesia: o sacrifício, o falo, a masturbação, a tortura, a malandragem e o renascer desdobrando-se em peças que de, uma intenção inicial, se transformam em trilogias, tetralogias e sagas sempre muito brasileiras, mesmo quando baseadas em clássicos de outros tempos e culturas. Uma cornucópia.
Houve quem detestasse por julgá-las anárquicas demais, excessivas, escrachadas e irreverentes aos clássicos. Gerações, porém, se renderam à força avassaladora do xamanismo ao mesmo tempo sublime e baixo do Oficina e seu diretor. Alguns simplesmente assistiram pela primeira vez e jamais conseguiram se recuperar, arrebatados pelo gozo e mistérios tão racionais que envolvia tudo em música, consciência cênica, política e beleza.
iBest: 247 é o melhor canal de política do Brasil no voto popularAssine o 247, apoie por Pix, inscreva-se na TV 247, no canal Cortes 247 e assista:
Este artigo não representa a opinião do Brasil 247 e é de responsabilidade do colunista.
Comentários
Os comentários aqui postados expressam a opinião dos seus autores, responsáveis por seu teor, e não do 247