Villas Bôas e Bolsonaro: o motim se alastra e chega ao Planalto
"O país está diante de uma situação de aberta ilegalidade, incompatível com a democracia. Há uma força militar que já não presta mais contas a ninguém. Criou-se um poder que pode tudo, sem rédeas, sem respaldo na Constituição", diz o colunista Mario Vitor Santos; "A chegada de Bolsonaro ao Planalto com ajuda desses métodos coroa toda uma carreira de ataques à ordem legal, e de desrespeito à hierarquia em especial"
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(este texto substitui uma versão anterior, que sofreu acréscimos e alterações)
A reveladora entrevista à Folha do general Eduardo Villas Bôas traz conclusões de que muitos já adivinhavam, mas que são surpreendentes quando afinal vêm à tona em toda a sua realidade. Surpreende a falta de continência (com trocadilho) com que o representante maior das Forças Armadas assume sem pudores o gesto de intervenção militar nas decisões da Justiça.
Da voz do próprio comandante vem a público agora, meses depois, o péssimo exemplo dado aos seus iguais e subordinados. Ao pressionar explicitamente o Supremo Tribunal Federal em abril deste ano via twitter para não libertar Lula e assumir que calculou intervir, Villas Bôas descumpriu o decreto 4.346, de 2002, que proíbe aos militares brasileiros envolver-se em assuntos políticos. De quebra, o general descumpriu também o próprio Regulamento Disciplinar do Exército, que classifica manifestação política como transgressão disciplinar.
Se não é para cumprir as regras que o próprio Exercito cria internamente e nem também as que o país determina democraticamente, o que então faz um comandante de Exército? Será que já vivemos um regime de exceção, estamos de volta ao pesadelo da ditadura de 1964? Os militares já controlam de novo os poderes da República? Como era de se esperar, o STF, em tese responsável pela defesa da legalidade, calou-se, submisso. Um general ameaça o poder democrático e nenhum poder o reprime.
O país está diante de uma situação de aberta ilegalidade, incompatível com a democracia. Há uma força militar que já não presta mais contas a ninguém. Criou-se um poder que pode tudo, sem rédeas, sem respaldo na Constituição. Os militares precisam se dar mais respeito. Suas aventuras por trilhas no passado que se julgava hoje superado custaram sérios prejuízos ao país, metido então em problemas de toda ordem que a historiografia registra. Agora, o comandante do Exército lança enorme interrogação sobre a pureza das decisões do STF, que votou sob pressão e decidiu afastar a possibilidade do candidato mais bem colocado nas pesquisas, o ex-presidente Lula, disputar a eleição. Visto assim, o pleito assume aspectos de fraude.
Tão preocupante quanto a prensa militar sobre as instituições da República são as circunstâncias que a cercam. Seu exame revela toda uma cadeia tensa de situações e eventos nas disputas de poder e de espaços internos às Forças Armadas, em particular ao Exército, e que a politização extrema criada pela eleição de Jair Bolsonaro agravou ao ponto do descontrole. Deste quadro, em muito submerso, aparecem apenas alguns sinais que se podem associar em busca de certos contornos.
Nas declarações de agora à Folha, o general Villas Bôas quis transmitir uma força e um controle de que já não dispõe. Expressou a opinião de uma corporação vergada pela ameaça da presença de Bolsonaro e de seus adeptos internos. Fez questão de delimitar espaços. Quis fazer crer que Bolsonaro há muito tempo não pertence mais e que continua não fazendo parte dessa coletividade, o Exército. Será verdade? Por que fez questão de demarcar essa distância?
Agora, o general Villas Bôas diz ter se valido do famigerado twitter para impedir um golpe maior: a explosão de insatisfação dos militares que estaria a ponto de ser deflagrada com a libertação de Lula. Revela o que tenta esconder: o Exército encontra-se há muito tempo ao sabor de infiltrações – ou seriam já unanimidades - bolsonarianas na tropa e no oficialato.
Há elementos vários em jogo, com implicações em diversos planos e vazamentos de influências para outras áreas das forças militares. Numa louca escalada, que acabou o conduzindo ao Planalto, Bolsonaro valeu-se de todos os métodos, inclusive a rebelião, instrumentos que foram sua marca desde os tempos de caserna e que estiveram na origem de seu desligamento do Exército.
O que era uma inclinação inflamatória, indisciplinada e violenta do tenente Bolsonaro nos tempos de caserna permaneceu agindo, após sua expulsão, na forma da agitação “sindical”, sempre insuflando a insatisfação com as condições de trabalho e os soldos insuficientes, em especial para o baixo escalão das Forças Armadas. O alvo também foram as forças policiais, especialmente as polícias militares, onde encontrou maior espaço para indisciplina.
Como diz Villas Bôas na entrevista, depois de ser forçado a sair do Exército, Bolsonaro “passou a gravitar em torno dos quartéis, explorando questões que diziam ao dia a dia dos militares”. O que o comandante não diz é que quebras da hierarquia foram sempre incentivadas por Bolsonaro em episódios de intranquilidade que estão potencialmente presentes também agora e terão que ser contidos, ou absorvidos no contexto da nova hegemonia, agora tendo o agitador como chefe supremo das Forças Armadas.
Não há “risco” de politização dos quartéis, como diz Villas Bôas. Não há risco porque eles já estão inteiramente politizados. É ele mesmo quem diz.
Na entrevista à Folha, Villas Bôas declara o seguinte do episódio da pressão sobre o STF na decisão sobre o habeas corpus que poria Lula na disputa eleitoral (com enormes chances de vitória, sendo o preferido disparado do eleitor): “Sentimos que a coisa poderia fugir ao nosso controle” porque “militares da reserva e civis identificados conosco estavam se pronunciando de forma enfática”. O quê? O general quer que o país acredite que ele estava preocupado com “militares da reserva e civis identificados conosco”?
O general já tinha então era perdido o controle. Não dos militares da reserva, mas sim dos da ativa. E corria atrás para retomá-lo. Foi por essa razão que, sem mais, se desencadeou este que pode ser denominado o novo golpe de abril. Os ministros do Supremo não gostaram de ver o ministro admitindo que deu um passa-moleque neles, mas contra os militares eles só falam em “off”.
O fato é que a história se repete: houve uma espécie de virada de mesa, com entendimentos e recomendações. E com timing preciso para difusão no Jornal Nacional, como sempre, para que a ameaça tivesse o efeito planejado. Uma virada feita agora não com tanques na rua, mas via twitter, pela rede, a rede não mais da legalidade, como nos tempos de Brizola, mas uma rede da ilegalidade. Como disse o cientista político Wanderley Guilherme do Santos, para evitar um golpe, Villas Bôas deu um golpe.
A chegada de Bolsonaro ao Planalto com ajuda desses métodos coroa uma carreira de ataques à ordem legal e de desrespeito à hierarquia, em especial. A politização dos quartéis foi a razão de toda a trajetória do capitão reformado, com maior repercussão externa junto às policias militares.
Sem se revelar, Bolsonaro esteve por trás do motim que paralisou as corporações policiais do Espírito Santo e do Rio Grande do Norte. A rebelião capixaba durou 21 dias em fevereiro do ano passado com um rastro de violência que deixou 215 mortes (com 43 mortos em um único dia, sob suspeita de seguirem um plano para provocar pânico), além de uma onda de roubos sem controle com prejuízos incalculáveis.
Movimentos semelhantes e conectados chegaram a contagiar dois quartéis do Rio, provocando alarme antes de serem contidos. O estímulo de Bolsonaro foi detectado nas formas de desencadeamento e na sustentação de todos esses movimentos. Há um padrão. As rebeliões geram líderes que concorrem a postos eletivos em eleições parlamentares seguintes., mesmo respondendo a processo por rebelião. Os líderes da greve capixaba disputaram eleição. Três foram eleitos pelo PSL, de Jair Bolsonaro, que terá a maior bancada da Assembleia Legislativa. Casos semelhantes ocorreram com líderes de rebeliões eleitos na Bahia, Ceará e Pernambuco, sempre de apoiadores de Bolsonaro.
Um olhar atento, além disso, percebe que a intervenção e a militarização da segurança pública do Rio, de resultados ainda duvidosos para a segurança “externa”, ou seja, a do cidadão, dirigiu-se também e principalmente para supostamente restabelecer o comando da tropa da polícia, depois que todas as autoridades estaduais reconheceram alarmadas ter perdido o controle da situação e entregaram o problema ao governo federal.
Um aspecto não suficientemente destacado, portanto, é que essa intervenção tinha dois lados e que o mais importante e oculto deles se volta para dentro das próprias forças policiais, na tentativa de garantir a cadeia de comando. O respeito à hierarquia foi terceirizado da polícia militar estadual para um general do Exército. O processo foi agora atropelado pelo inesperado fator da eleição de Bolsonaro, que implica simplesmente que o motim foi para o poder.
Ainda como consequência das rebeliões do Espirito Santo e Rio Grande do Norte, para tentar controlar o espalhamento de eventuais levantes parecidos que ameaçavam explodir em outros Estados, criaram-se grupos, inicialmente informais, para troca regular de informações entre áreas de inteligência das forças de segurança de diversos estados.
A partir daí, a pedido dos próprios estados, surgiu uma coordenação nacional, agora em torno da Abin e do Gabinete de Segurança Institucional, a cargo do opaco general Sergio Etchegoyen, e também ao ministério “Extraordinário” da Segurança Pública. São iniciativas para prevenir novos levantes, mas nada disso, porém, é capaz de compensar o estímulo representado pelas anistias frequentemente concedidas pelo Congresso a policiais que se amotinam, dando aval político e tornando letra morta o Código Penal Militar.
Com Bolsonaro no poder, uma estrutura que antes incluía uma duvidosa e secreta tentativa de conter o espraiamento dos motins passa agora ao controle do chefe da revolta. Dessa posição ele terá condições ideais para conceder vantagens de todo tipo e até ampliar o regime especial de aposentadorias para militares e policiais, além dos chamados “excludentes de ilicitudes” e outras variações ainda mais degeneradas da licença geral para matar os pobres que governará o Brasil e muitos dos maiores Estados a partir de 1º de janeiro.
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