Vargas não é um boi

Vargas, com os pequenos olhos bem abertos, não grita. Amarga amargando a amargura. Da janela do apartamento da advogada Gardênia ele vê a noite do Recife. Lá embaixo a Sete de Setembro está deserta, ou com alguns policiais na campana. Mas ele não vê o céu escuro. Tudo nele é desvio do terror.

Skyline of Recife in Pernambuco, Brazil showcasing its historic architecture at sunset by the Capibaribe River.
Skyline of Recife in Pernambuco, Brazil showcasing its historic architecture at sunset by the Capibaribe River. (Foto: Urariano Mota)


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Ele sabe com a consciência mais desperta que vive as suas ultimas horas. Diferente do jovem em Olinda, ele pode fugir antes dos tiros, evadir-se, para assim impedir que o seu corpo inche, se alargue a tal ponto que não entre em um caixão. E por que não o faz? "Eu conversei com ele, disse que ele fugisse", anotou Gardênia no diário. Mas Vargas lhe respondeu na sala do apartamento do Edifício Ouro: "Fugir não podia, ele me disse. Pela segurança da esposa e da filha". E voltou a advogada: "Eu pedi que ele deixasse a criança sob meus cuidados. Ele me falou que não ia levar Nelinha para uma aventura, porque ela era uma pessoa frágil e seria também assassinada. Aí seria pior, porque a menina ficava órfã". A primeira observação é a consciência de que será morto, porque ele resiste a que Nelinha seja "também assassinada". E assim o dano seria maior: a frágil Nelinha mais a orfandade da filha. E resolve ficar e se fincar. A segunda observação é a que dá o tamanho do terror nos olhos de Vargas: ele é um homem sozinho, está sem partido. Vargas segue na contramão: desvinculado, está só, sabe que vai cair, não tem apoio, isolado se encontra. Isso mostra a medida da infâmia, ele está sem organização clandestina, mas ainda assim será divulgado como um terrorista, que desejava o fim da democracia no Brasil. Daí vêm os seus olhos de índio crescidos, a pele morena sem cor, o rosto de varíola pálido.

Antes do limite da morte, há um limite da dignidade onde raros conseguem ir. Se nos batem, se nos espancam e não podemos responder, a esperteza manda que fiquemos dóceis, menores que o agressor, pois ele possui as ferramentas para nos machucar. A maioria de nós, ou quase todos gritamos, porque o grito afinal é expressão da dor, e imaginamos, lá na ilusão da esperteza, que nossos gritos doloridos comoverão o braço do carrasco. Esses gritos, verdadeiros de dor, acabam por ser o pior do que somos. São gritos que clamam por misericórdia, que se denunciam "eu sou fraco", eu sou ninguém, pelo amor de deus, pare. É humano, mas não é gratificante lembrar como uma honra dos nossos dias. "Se não gritasse, eu seria morto". Então, para evitar o pior, baixamos até o piso do nosso próprio ser. É humano, queremos dizer, é compreensível em toda e qualquer pessoa. Nem podemos ser exigentes para o que apenas enxergamos de camarote, fora da dor. Mas aqueles gritos que pedem por clemência também doem na gente. Se pudéssemos, falaríamos ao espancado: "pare com isso, sofra com dignidade". E com um resto de inteligência a vítima poderia nos responder: "Quer vir para o meu lugar?".

Vargas, com os pequenos olhos bem abertos, não grita. Amarga amargando a amargura. Da janela do apartamento da advogada Gardênia ele vê a noite do Recife. Lá embaixo a Sete de Setembro está deserta, ou com alguns policiais na campana. Mas ele não vê o céu escuro. Tudo nele é desvio do terror. Como era bom que fosse manhã e o sol trouxesse a democracia, para do terraço discursar aos recifenses libertos. "Presta atenção, Vargas. Presta atenção!", ele bate com a mão na testa.

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- O que foi? – Doutora Gardênia pergunta.

- Nada.... – Então ele pegaria a sua frágil Nelinha, a filha de cristal, pequenininha, e desceriam juntos para o dia de sol na Conde da Boa Vista. De mãos dadas, prontos para o levantamento da pátria socialista.... ..

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- Doutora, eles vão em cima de Nelinha.

- Então fuja com ela. Deixe o bebê comigo.

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- Doutora, doutora... – e Vargas quebra a voz. – Doutora, eu amo Nelinha. Eu não vou metê-la nesta aventura.

*Do romance "A mais longa duração da juventude", https://literarua.commercesuite.com.br/livro/juventude

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Diário de Pernambuco

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