Vala de Perus, uma ferida aberta e uma lição esquecida

A vala de Perus, um depósito clandestino de 1047 corpos de assassinados pela recente ditadura civil-militar brasileira, localizada no cemitério Dom Bosco, cidade de São Paulo, revelou, na semana passada, mais um de seus horrendos segredos



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A vala de Perus, um depósito clandestino de 1047 corpos de assassinados pela recente ditadura civil-militar brasileira, localizada no cemitério Dom Bosco, cidade de São Paulo, revelou, na semana passada, mais um de seus horrendos segredos. Uma das ossadas foi identificada, após longos exames genéticos, realizados por um laboratório especializado, como sendo a de Dimas Antônio Casemiro, militante de esquerda na cidade de Votuporanga, interior de São Paulo, morto aos 25 anos pelas forças de segurança do Estado. Os exames também comprovam que, contradizendo a versão dos militares, Dimas não morreu em um tiroteio com as forças policiais, foi executado a sangue frio após dois dias de violenta tortura. O corpo do irmão de Dimas, Dênis, é outro dos quatro até agora identificados.

Perus é uma lição de história dramática sobre o que realmente significa uma ditadura. Descoberta em 1990 a vala continha mais de mil ossadas, embaladas em sacos plásticos, e transferidas para lá em 1976. Pessoas executadas pela ditadura, diretamente pelas forças armadas em seus quartéis ou através do gigantesco aparato paramilitar de investigação e tortura, como a Operação Bandeirantes, e os grupos de extermínio. Sua existência põe por terra as tentativas contemporâneas, de grupos de extrema direita com pouca afeição a dados históricos, de relativizar a violência praticada pelos órgãos de repressão durante a longa noite da ditadura. A simples contagem das ossadas recoloca as verdadeiras dimensões do drama. Costuma-se reduzir o número de assassinatos da ditadura, e a abrangência de sua violência, ao contabilizar somente os desaparecidos políticos, militantes das forças democráticas que, como Dimas, foram sequestrados, torturados e executados pelos militares por lutarem contra o regime autoritário, 434 pessoas, segundo a Comissão da Verdade. Embora nada justifique a tortura e assassinato destas pessoas, essencialmente jovens estudantes embalados por sonhos de justiça e igualdade, estes números são usados para esconder a verdadeira quantidade de mortos e afirmar que a violência se restringiu a setores da esquerda que conspiravam contra a ditadura.

Perus prova, sem possibilidade de contestação, que os crimes praticados pelo Estado naqueles anos são muito maiores e mais amplos do que se costuma acreditar. A vala é somente um dos depósitos, é provável que muitos nunca sejam encontrados, e sozinha contém mais cadáveres que o dobro de mortes reconhecidas. Prova assim não só que a ditadura matou muito, mas também que sua violência se dirigiu contra os mais diversos setores da sociedade. Lá não estavam só os militantes de esquerda, que possivelmente são a minoria dos corpos, mas também os trabalhadores assassinados pelas forças policiais e pelos grupos de extermínio em chacinas inúmeras destinadas unicamente a promover o genocídio dos pobres. A ditadura não temia só a esquerda, ela temia o povo e o tratava como inimigo da nação, reservando para ele práticas de combate próprias da guerra.

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Mesmo o combatente mais feroz não costuma negar a seus inimigos o direito a ritos fúnebres e uma sepultura conhecida. O funeral e o enterro são uma das formas como ritualizamos nossa dor e aceitamos a morte, são partes fundamentais de nossa psicologia e cultura, uma questão tão antiga que já preocupava a Grécia Clássica e se expressou em obras como Antígona, em que a protagonista exige do Estado o corpo de seu irmão executado ou na lenda de Aquiles, que mesmo sendo um guerreiro brutal não nega os ritos fúnebres a seu odiado inimigo Heitor.

E aqui Perus denuncia a profunda crueldade da ditadura brasileira. Aos que defendem a ditadura eu proponho um exercício de alteridade, tentem se colocar no lugar de uma mãe, um pai, um irmão, uma esposa, um filho, que teve seu ente querido sequestrado e assassinado pelo Estado e que já procura por mais de quarenta anos o corpo. É uma ferida latejante, que não cicatriza e não permite ter paz ou seguir em frente. A presença do corpo dá a certeza da morte, em sua ausência a morte, mesmo que sabida, está em suspenso e a espera continuará. A mãe que não enterrou seu filho ficará, para sempre a esperar que ele cruze, repentinamente, os umbrais de sua casa e lhe dê o abraço a tanto esperado.

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Esse é um dos custos de uma ditadura, para aceitar é preciso renunciar aos elementos mais fundamentais de nossa humanidade, como empatia e tolerância, e concordar que eventualmente nós mesmos ou as pessoas que amamos vão desaparecer na noite e compartilhar do destino dos animais selvagens, após lacerados pelas feras repousar sem sepultura. O custo das ditaduras é que para suprimir a liberdade se afiliam da morte e terminam matando para garantir o direito de matar, os que pedem por elas deviam olhar para Perus e pesar melhor os custos, nós, pelo contrário, como diria o poeta Pedro Tierra, recusamos a morte e seus labirintos. Apostamos nossas vidas na democracia que, embora imperfeita como toda experiência humana, é a melhor forma de mediar os conflitos de um mundo plural, garantir as condições para que prospere a justiça e evitar que quem governa possa dar vazão a seus instintos mais primitivos.

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