Vaga garantida

Vaga garantida implica uma postura de descompromisso com o vale de lágrimas presente no mundo coletivo humano



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“Lembra-te de que dinheiro pode gerar dinheiro”. (Benjamin Franklin)

“A prática confere às palavras o seu sentido”. (Ludwig Wittgenstein) 

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“Primeiro, a vida concreta; a palavra é sempre o último anúncio”. (Chiara Lubich)

Como posso eu saber que duas pessoas se referem ao mesmo Deus quando cada uma delas diz acreditar nele? No léxico grego encontra-se a palavra “Pistis”, para a qual há a conotação de “Fé”, ou seja, o crédito que se goza junto a Deus e o crédito que as proposições de Deus gozam junto de nós a partir do momento em que acreditamos nelas. Dessa perspectiva, a Fé nada mais é do que aquilo que dá Crédito e Realidade ao que ainda não existe; mas pelo fato de se crer e ter confiança, coloca-se em jogo a credibilidade e a palavra dada. (Giorgio Agamben. A Comunidade que vem. Autêntica, 2013).

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Segundo a visão weberiana, a mercantilização do tempo é a base ideológica pela qual o cristianismo calvinista definiu o roteiro da salvação eterna dos seus fiéis (“Time is money”), propondo uma “ética” voltada para a acumulação financeira (busca desenfreada pelo dinheiro). Esta fórmula do enriquecimento material é utilizada como método para explicar a teoria teológica da predestinação, segundo a qual, antes mesmo da criação do mundo, Deus predestinou aleatoriamente (Por quais critérios? Os belos olhos? A maciez facial? A voz envolvente?) os seus escolhidos para o paraíso eterno, bem como aqueles que se perderão no fogo eterno. Para vários autores, a discussão entre Agostinho (De Corruptione et Gratia: “no caso dos santos predestinados ao Reino de Deus, foi concedida uma graça especial”.) e Pelágio, nos anos 300 d.C., é normalmente tida como o momento seminal no qual o tema foi evidenciado. Posteriormente, com a Reforma Protestante, o monge agostiniano Martinho Lutero (1483-1546) e o teólogo cristão francês João Calvino (1509-1564) desenvolveram a seu modo as ideias agostinianas sobre a predestinação.

Ademais, há passagens bíblicas evocadas pelos seus defensores, tanto na ideia de que Deus livremente escolheu um povo seu – no caso, os israelitas – quanto na doutrina paulina da predestinação, onde em carta aos romanos se lê que aqueles que Deus distinguiu de antemão, também os predestinou. E aos que predestinou, também os chamou; e aos que chamou, também justificou; e aos que justificou, também os glorificou. A escolha não depende da vontade daquele que quer, nem da liberdade daquele que corre, mas da vontade de Deus. (Romanos 8, 29-30; 9, 16).

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Para o calvinismo, se uma pessoa obtiver sucesso em sua atividade econômica (trabalho) e resistir rigidamente aos vícios morais (pecado) relacionados por esta tradição religiosa, será um sinal evidente de que é predestinada de Deus, com vaga garantida na felicidade eterna pós-morte. Em outras palavras, ser pobre (fracassado por não fazer dinheiro) é sinal de exclusão da graça, de condenação eterna: o Dinheiro não tem piedade alguma por aqueles que não têm dinheiro. A salvação só é alcançada pela extrema valoração do acúmulo de riqueza material juntamente com o rigor na vivência dos costumes religiosos. Ou seja, o Trabalho, o Sucesso e o Lucro como centralidade motora (espírito) da unidade entre a vida religiosa calvinista com a vida econômica capitalista. 

A partir da análise dessa máxima calvinista e da estrutura do funcionamento do capitalismo, Giorgio Agamben vem confirmar o capitalismo como uma religião. Mas em que crê o capitalismo? Do ponto de vista da fé (pistis), o capitalismo não tem nenhum objeto: crê no puro fato de crer, no puro crédito, ou seja, no dinheiro. O capitalismo é, pois, uma religião em que o crédito ocupa o lugar de Deus. Isto é, pelo fato de o dinheiro ser a forma pura do crédito, é uma religião em que Deus é o Dinheiro: O Banco substitui a Igreja, ministrando aos fiéis o único sacramento da religião capitalista: crédito-débito. Pela divisão do trabalho se gera dinheiro; mediante o dinheiro, o trabalho é novamente dividido para ganhar mais dinheiro e assim por diante. Divide-se e continua-se a dividir, a privatizar, a desmembrar, a pauperizar o trabalho dividido para nele gerar mais acúmulo (mais-valia). A partir dessa fé única e totalitária, reina uma orfandade ética, com a vida sendo pautada por uma racionalidade instrumental e não valorativa. Consequentemente, não se tem mais escolha, esfacela-se a política como o lugar de escolhas, de se criar novas possibilidades. A vontade de Deus é a vontade do Mercado. Ou como afirma aquele frade franciscano alemão: “Para nossos negócios, a direita é melhor”.

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O Dinheiro está por toda parte, mediando todas as relações. Eleva-se um culto permanente a sua divindade: todos os dias – de domingo a domingo – são dias santos de guarda, gerando um gozo ininterrupto do louvor humano ao capitalismo. Essa religião não conhece pausa, fazendo-se presente na vida das pessoas 24 horas por dia.  

Mas se de fato Deus estabeleceu aleatoriamente o destino eterno (predestinação) e a forma definitiva de vida dos indivíduos (acúmulo capitalista), a vontade e a liberdade humanas são retiradas de cena. Se não há vontade nem liberdade, não é possível a existência da Ética (ou de qualquer instância relacionada ao escopo de valores), a qual está justamente voltada para a dimensão valorativa da vida humana, indagando sobre aquilo que é e não deveria ser conjuntamente sobre aquilo que não-é e deveria ser, impulsionando a vontade das pessoas a agir em busca da transformação do mundo para dar resposta concretas aos conflitos valorativos e relacionais, visando à criação de novos mundos mais justos e felizes.

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Vaga garantida implica uma postura de descompromisso com o vale de lágrimas presente no mundo coletivo humano. Afinal, se o meu destino está traçado pela predestinação divina, mediante o acúmulo de riqueza que devo perseguir ininterruptamente para demonstrar a minha predestinação enquanto escolhido de Deus, se tudo que faço já está predestinado, não adiantará preocupar-me com o que acontece ao meu redor. A vida em sociedade, com suas alegrias e dores, com suas injustiças e sofrimentos, não é um problema meu, torna-se um problema de Deus. Como diria a metodista-anglicana Margareth Thatcher, “não há sociedade”. Contudo, como lembra o filósofo Ludwig Wittgenstein, se se pretende ficar na esfera religiosa, há que lutar, e para tanto é preciso discernir quais tipos de discurso – teológico, econômico, político – influenciam na significância da vida humana.

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