Uma trabalhadora sob o fascismo no Brasil
Afasto-me com os pães escuros, meio sem rumo, meio tonto da verdade com que nos falamos. Não sei o nome da trabalhadora. Aprendi, nos anos de repressão,E me a não identificar pessoas pelos nomes. Mas guardo a sua revolta, que um dia, se deus for humano, espero ser digno dela
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Nesta semana, conversei com uma trabalhadora que até agora não me sai da lembrança. Quando eu solicitei pães na padaria do supermercado, eu lhe disse:
- Por favor, escolha os mais escuros. Em branco, já basta o meu bolso.
Ela concordou em silêncio. Então eu voltei:
- Com este desgoverno, a situação é esta: sem dinheiro, e piorando mais.
Ao que ela, enquanto escolhia os pães escuros, me respondeu:
- O senhor é o primeiro que escuto falando assim.
Não sei se eu era o primeiro cliente a conversar com ela, porque vivemos numa imitação de sociedade de castas, ou se eu era o primeiro a reclamar do desgoverno enquanto comprava pão. Mas na hora a dúvida que me ocorreu foi outra: será que ela quer dizer que sou apenas uma voz isolada? Que ela própria não acompanha a minha reclamação? Por isso voltei, desta vez mais didático, não sem antes de me virar pra ver se havia mais gente em torno:
- As pessoas não fazem uma relação entre o que estão vivendo e o maldito que está no poder. As pessoas sentem o sofrimento, mas acham que não tem nada a ver com o sujeito em Brasília.
Então a trabalhadora levantou a cabeça e me olhou de frente, com estas palavras difíceis de serem esquecidas.
- Eu trabalho o dia inteiro, todos os dias, sábado, domingo e feriado. No fim do mês, o que recebo é pra pagar 400 de aluguel, uma pessoa pra passar um olho em minha filha, e as passagens. Só 20 reais me sobram. Somente.
E fechando o saco de pães, completou:
- O meu marido é quem paga a feira e a carne. Ele é ajudante de pedreiro.
Ao que eu voltei:
- E como estão as mulheres que enfrentam a vida sozinhas, com filhos, como a maioria das mulheres do Brasil?
Talvez eu tenha inflamado uma corda sensível com essa pergunta, porque ela me falou, rubra e sem medo:
- Eu ia ficar lascada. Olhe – e aponta para os trabalhadores do setor de frios -, aqui tem muito colega que veio do corte da cana. Eles falam o que era trabalhar de sol a sol, se furando nas folhas de espinho, cortando ligeiro pra produção crescer. Então eles aqui se submetem a tudo pra não voltar. E não podem adoecer.
E respondo:
- A senhora viu o que o ministro da “saúde” falou? Que não era com ele a falta de oxigênio no Amazonas. Como pode? Essa falta de oxigênio atinge todo brasileiro, tem a ver com todo brasileiro. Como é que um ministro fala que não tem nada com isso? Ele é o quê?
Então volta a trabalhadora:
- Eu queria ter força pra gritar, pra derrubar esse governo de qualquer maneira. Eu queria ter força!
Então eu lhe conto um segredo, uma confissão rara, mas lhe falo porque a sua sinceridade foi tão grande, que me escapam estas palavras:
- Eu sou escritor. Se um dia eu tiver talento, se um dia eu for feliz, quero escrever sobre a sua revolta. Quero estar à sua altura.
E me afasto com os pães escuros, meio sem rumo, meio tonto da verdade com que nos falamos. Não sei o nome da trabalhadora. Aprendi, nos anos de repressão, a não identificar pessoas pelos nomes. Mas guardo a sua revolta, que um dia, se deus for humano, espero ser digno dela.
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