Uma questão de ordem pública

Há um dever social com relação à vacinação, pois a política de imunização só alcança resultados efetivos com a adesão de todas as pessoas

Fiocruz e a vacinação
Fiocruz e a vacinação (Foto: Agencia Brasil)


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Por Jorge Luiz Souto Maior, no Portal A Terra é Redonda

Não tem sido fácil a tarefa de convencer os incrédulos de que a vacinação contra a COVID-19 é um imperativo de saúde pública do qual não se deve afastar. Os negacionistas se apegam em todo tipo de argumentação para não se submeterem à vacinação, indo desde a fala de que o vírus foi uma criação malévola para escravizar as pessoas, ou de que se trata de uma invenção da China para dominar o mundo, passando pela consideração de que a vacina é experimental e que pode transformar pessoas em jacarés, até chegar no ponto, estritamente jurídico, da defesa da decisão de não se vacinar como expressão da liberdade individual, direito inalienável de todo cidadão.

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Este último argumento, gostemos ou não, concordemos com ele ou não, é um argumento juridicamente relevante e não pode ser simplesmente desconsiderado. Requer uma objeção mais direta e consistente.

Fato é que, como há muito já se consagrou na esfera jurídica, a liberdade de um termina quando começa a liberdade, contraposta, de outro. Neste choque de interesses juridicamente qualificados, estando de um lado questões de ordem pública estas tendem a superar os interesses meramente individuais.

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E não é só isto, pois o que se contrapõe à opção individual de não se vacinar não é apenas o interesse coletivo alheio, mas, mais precisamente, o dever que todas as pessoas possuem – e que constitui a relação jurídica básica do ser social – de respeitar as regras básicas do convívio social. Há, portanto, um dever social com relação à vacinação, vez que esta constitui a política pública de imunização, que só alcança resultados mais efetivos com a adesão de todas as pessoas.

O ato de não vacinar, portanto, antes de ser ou não um direito individual, é um boicote ao dever social, baseado na preservação coletiva da vida, a que todos e todas, indistintamente, estão submetidos(as). E mesmo que se entenda que quem não se vacina não tem a intenção de destruir vidas alheias, ou seja, mesmo admitindo que sua decisão esteja baseada na crença de que a vacina não salva vidas ou que pode causar danos, a equação não se altera, pois a vontade ou a percepção de realidade do agente não impacta na avaliação jurídica de seu ato.

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De todo modo, o que os não vacinados têm em apoio da formação de sua vontade é apenas uma impressão pessoal, ou, como dito, uma crença, enquanto que com relação à importância da vacina o que se tem são dados concretos, cientificamente observáveis.

Somados todos estes aspectos o que se tem como resultado inequívoco é o aniquilamento do suposto direito de não se vacinar, até porque, ainda falando juridicamente, ninguém tem o direito de tirar a própria vida e menos ainda o de colocar a vida de outros em risco, interferindo na efetividade da política pública de saúde para o enfrentamento de uma pandemia. Fato é que a decisão de não se vacinar, vista por todos os ângulos, não é um valor que tenha respaldo na ordem jurídica.

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A grande questão é que as respostas jurídicas não têm sentido no mundo abstrato. É preciso que tenham efetividade, para que alcancem a realidade concreta. E se é irrefutável concluir que não há um direito que acolha a decisão de não se vacinar, isto não equivale a dizer que se possa fazer que o não vacinado seja submetido a uma vacinação à força. Surge, a partir deste limítrofe da preservação da intimidade, o desafio de estabelecer consequências jurídicas para o ato – que é também jurídico – de não se vacinar.

O grande problema que vejo neste ponto é o de se invocarem dispositivos jurídicos de índole autoritária e que, sem a devida generalização, acabem reproduzindo – e até legitimando – os nossos maiores vícios sociais: discriminação; opressão e exclusão. Pois bem. Primeiro, é importante reiterar que as implicações jurídicas podem ser fixadas não só considerando os efeitos dos atos (ou omissões) praticados, mas também pelos riscos a direitos que geram e, nestes aspectos, a responsabilidade se avalia objetivamente, o que quer dizer que, para a atribuição dos efeitos, não se perquire acerca da vontade do agente, a não ser como elemento de agravamento.

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Como a decisão de não se vacinar acaba sendo, com ou sem esta intenção, um estímulo para que outros ajam da mesma forma, a deliberação individual interfere negativamente na evolução do enfrentamento coletivo da pandemia. Assim, são perfeitamente válidas, portanto, as medidas de restrição aos não vacinados, mas desde que se apliquem à generalidade das pessoas integradas a este grupo social, tais como passaporte vacinal e a restrição de acesso a locais públicos.

Estas medidas, no entanto, continuam estimulando os debates no plano do conflito de normas jurídicas fundamentais. Além disso, têm se demonstrado pouco eficazes para gerar o efeito concreto mais relevante que é o da vacinação, dado seu baixo teor de coerção, na maioria dos casos.

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Então, diante da renitente crença dos não vacinados de que estão exercendo legitimamente o seu direito inalienável da liberdade individual e da baixa eficácia das medidas restritivas de liberdade de locomoção que, até, renovam nos negacionistas a “certeza” de que são vítimas de uma opressão do Estado e da coletividade que age a serviço do sistema, é preciso, e urgente, dar um passo além, trazendo à tona o tema da responsabilidade civil, até para que se possa falar em uma linguagem que é a que melhor se entende no mundo capitalista, qual seja, a do efeito no bolso.

Ora, concretamente, já não se está mais no estágio (se é que algum dia se esteve – ao menos do ponto de vista científico) de discussão sobre a eficácia da vacinação para o enfrentamento da pandemia. Os dados reais demonstram, inequivocamente, que as vacinas (todas elas) estão sendo eficazes para combater os efeitos maléficos do contágio do novo coronavírus.

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Mesmo com o advento de uma nova onda, onde o vírus se alastra muito mais fácil e rapidamente, o número de mortes, proporcional ao contágio, tem sido muitas vezes menor do que no período em que a população (ao menos a maior parte dela – 70%, para ser mais exato – em números atuais) não tinha sido vacinada.

E, segundo os mesmos dados, os efeitos mais danosos (mortes e internações mais longas) têm sido sentidos quase que exclusivamente pelos não vacinados. Os números mostram que os não vacinados respondem por mais de 90% das mortes e das internações mais duradouras em UTIs.[1]

Esta situação reforça o argumento deste grupo de que a sua decisão apenas causou mal aos seus próprios integrantes? Não, bem ao contrário! O que se tem como resultado é que os não vacinados estão prejudicando milhões de pessoas e das mais variadas formas. Pensemos objetivamente.

Vejamos, de plano, o sofrimento que provocam em amigos e parentes e à sociedade como um todo, porque, afinal, vidas importam. Em seguida, vislumbremos os sacrifícios adicionais que estão impondo aos agentes de saúde, os quais, já exaustos depois de dois anos de trabalho desumano, continuam em intensa e insana atividade para cuidar de milhares de pessoas que, se vacinadas estivessem, não estariam nas condições de saúde em que estão. Quantos profissionais da saúde não estão adoecendo diante da sobrecarga de trabalho causada pelos não vacinados? Aliás, vale o registro de que desde o momento em que se efetivou esta identidade de público, os profissionais da saúde, antes tratados como heróis e heroínas, ainda que retoricamente, passaram a ser alvo de agressões físicas dos “pacientes” e seus parentes.[2]

Pensemos, também, no alto custo que tem sido suportado pelo Estado para promover a vacinação gratuita da população, mas este custo tem sido parcialmente desperdiçado pela atitude de cerca de 30% da população que recusa a se vacinar. E não é só isto. Há de se pensar, ainda, no custo social adicional gerado com as internações dos não vacinados, que já sobrecarregam o sistema de saúde como um todo.

Neste aspecto, aliás, é de se considerar todas as vidas que estão sendo sacrificadas ou colocadas em risco, pois grande parte dos gastos do Estado com saúde pública que poderia ser direcionada para outras finalidades está sendo destinada aos cuidados dos não vacinados. O fato é que se os não vacinados consideram que estão dentro do seu direito que, ao menos, arquem com as consequências econômicas de seu ato. O efeito matemático de sua decisão é o aumento considerável do custo social. Assim, o outro lado da moeda da decisão de não se vacinar é a obrigação de indenizar o Estado e a sociedade pelos danos causados.

A figura do dano social (também tratada, de modo mais restrito, como “dano moral coletivo”), que foi apresentada, inicialmente, nas lições do professor titular de direito civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, Antônio Junqueira de Azevedo,[3] e que foi edificada com o advento do novo Código Civil, em 2002, sobretudo, quando refere aos efeitos sociais e econômicos dos atos contrários à ordem jurídica, é plenamente aplicável ao caso.Quem gera danos ao erário e à sociedade deve repará-los, sendo que, no caso, a reparação se daria por meio do suporte do custo adicional imposto aos serviços de saúde. Cabe, pois, responsabilizar juridicamente que está motivando a realização do serviço em duplicidade que o Estado está prestando a um grupo social específico, em prejuízo, inclusive, do tratamento da saúde do outro grupo, os que já se vacinaram. Posição similar, mas por meio de instrumentalização jurídica mais polêmica, foi assumida pela província do Quebec, no Canadá.[4] E também na Áustria.[5]

A ação civil pública, regulada pela Lei 7.347/85, vislumbrando a responsabilidade objetiva deste grupo social específico, é instrumento eficaz para tanto. Mas também esta responsabilidade poderia ser fixada em lei específica.

A responsabilidade em questão não está ligada à repercussão individual e sim à própria decisão de não se vacinar, que, por si, gera todos os efeitos já mencionados. Assim, não é fator que afaste a responsabilidade o fato da pessoa integrada a este grupo ter sido infectada, ou não, ou mesmo de ter se valido apenas de serviço privado de saúde para o seu tratamento. A atitude de não se vacinar, ou de não completar o ciclo vacinal, reflete uma posição coletivamente assumida e que atrai mais pessoas para o mesmo “buraco”. A identidade deste grupo e que constitui o vínculo jurídico de solidariedade que os une é, portanto, o ato de não se vacinar, independente da motivação e do efeito individual concreto, com exclusão das pessoas cuja vacinação foi desaconselhável por questões médicas, cientificamente admitidas.

A reparação deve considerar as diferenças econômicas dos integrantes do grupo. É necessário, pois, que os efeitos econômicos sejam mais gravosos para aqueles que ostentam ganhos acima da média nacional, de modo, inclusive, a gerar uma consequência que possa efetivamente ser sentida pelos anti-vacina mais abastados.

A ideia é dividir o custo social adicionado entre os integrantes deste grupo, cabendo aos que possuem renda igual ou superior à média nacional, o pagamento quase integral deste custo, para que não se penalize, mais uma vez, a pobreza. Desse modo, o grupo dos não vacinados suportaria as consequências econômicas do seu ato, inclusive com afetação de seus bens, em caso de morte. O que não se apresenta como justo e correto é que o custo adicional para a saúde pública, promovido pelos não vacinados, seja suportado por quem se vacinou.

E se existe esta responsabilidade civil de quem não se vacinou, há, inequivocamente, responsabilidade administrativa de quem deveria promover a vacinação e não o fez a tempo e modos devidos, além da responsabilidade criminal de quem incentivou (e ainda incentiva) as pessoas a não se vacinarem.

Quando as instituições voltarem a funcionar no Brasil, quem sabe a ordem jurídica possa ser respeitada e quem sabe possamos, enfim, enfrentar as questões de fundo que dizem respeito ao acesso público, igualitário e gratuito de todas as pessoas aos bens necessários à preservação da saúde e da vida, fixando-se, pois, uma efetiva política pública de preservação da saúde e, sobretudo, superando o modelo de mercantilização da vida e da privatização da ciência e do conhecimento, começando pela quebra de patentes.

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