Uma história de traição

Neste Brasil desmemoriado, que nunca olhou com o interesse que deveria para a América Latina, pouca gente deve se lembrar do que foi a Revolução Sandinista

Ato no Dia Internacional da Mulher trabalhadora em Manágua, 8 de março de 1988
Ato no Dia Internacional da Mulher trabalhadora em Manágua, 8 de março de 1988 (Foto: Wikipedia)


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Por Eric Nepomuceno, do Jornalistas pela Democracia

Alguns acontecimentos recentes na pobre Nicarágua chamaram a minha atenção e me deixaram absolutamente indignado. Sim, na Nicarágua.

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A verdade é que neste Brasil desmemoriado e que nunca olhou com o interesse que deveria para o resto da América Latina, pouca gente deve se lembrar do que foi a Revolução Sandinista, que em julho de 1979 derrubou a ditadura da dinastia Somoza, que por quase quarenta anos sangrou e espoliou a pequena e bela Nicarágua, na América Central.

Foi a última revolução da minha geração, e talvez a última do seu tipo no mundo.

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Entre 1980 e 1990 acompanhei de perto o que os sandinistas – seguidores do mítico Augusto César Sandino, que lá por 1930 expulsou os norte-americanos de seu país e por isso foi assassinado – fizeram e enfrentaram na Nicarágua. Integrei um grupo de escritores, jornalistas e artistas estrangeiros que não apenas apoiaram, mas colaboraram com os sandinistas em tudo que puderam.

Presenciei momentos de esplendor e de horror. Lembro de quando a Revolução recém-instalada suspendeu o semestre letivo de quem tinha mais de 14 anos, com uma nova missão: os que sabiam ler e escrever deveriam ir para o interior numa imensa brigada de alfabetização. Era, ao mesmo tempo, a abertura para que um país – o urbano – conhecer outro, o rural, abandonado e paupérrimo.

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Jamais esquecerei o que vi, ao lado de Julio Cortázar, numa aldeola abandonada no meio do nada. Cinco meses antes tinha sido criada uma escola num galpão, para alfabetizar crianças, jovens e adultos. Entre a garotada de sete anos em diante havia adultos e um bom punhado de velhos e velhas. Lá pelas tantas, Cortázar se aproximou de uma adolescente negra, e perguntou a ela o que mais gostava da escola. A adolescente sorriu um sorriso luminoso e contou: “Os sapatos”.

Ela tinha doze anos e nunca tinha colocado os pés dentro de sapatos.

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Foi feita uma reforma agrária veloz, e os imóveis urbanos abandonados pelos milionários que fugiram da Revolução foram estatizados.

Não demorou muito para que Washington agisse, para evitar “uma nova Cuba” na América Latina. E então começou o horror, com os “contrarrevolucionários” fartamente armados, alimentados, abastecidos e financiados pelos Estados Unidos se lançando em um terrorismo ilimitado.

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Ainda assim, e a duras penas, a Revolução sobreviveu. Havia apoio da União Soviética e de vários países de governos progressistas, além de Cuba e do México.  

Em 1990 foram realizadas eleições, e o candidato sandinista, comandante Daniel Ortega, perdeu. Começou então o desmantelamento do que tinha sido a Frente Sandinista de Libertação Nacional. 

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E começou também um dantesco e desprezível espetáculo de traição, que chegou ao seu auge agora, por esses dias.

Primeiro um comandante sandinista heroico, Hugo Torres, morreu num hospital depois de ter ficado preso em condições desumanas durante meses e meses. Poucos dias depois, Dora Maria Téllez, a “Comandante Número Dois” da mesma Frente Sandinista, foi levada a julgamento e condenada há oito anos de cadeia. Detalhe: ela só conheceu o advogado de defesa no tribunal, ele não teve acesso aos autos do processo, Dora pôde falar por escassos quatro minutos e foi interrompida pelo juiz três vezes. 

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Outro detalhe, especialmente revelador: os dois comandaram a ação guerrilheira que em 1979 tirou da cadeia o atual ditador Daniel Ortega.

Ditador? Sim, exatamente. Ortega e sua mulher Rosario Murillo há dezesseis anos manipulam eleições para manter uma dinastia ditatorial idêntica, tanto na repressão como na roubalheira, que a da família Somoza que os sandinistas derrubaram em 1979.

Sim, sim, a Nicarágua padeceu e padece com o isolamento imposto por Washington. Porém, padece mais ainda pelo que faz o casal Ortega-Murillo. Nas eleições do ano passado, por exemplo, sete candidatos de outros partidos foram presos em condições terríveis.

Nos últimos dois anos a repressão armada liquidou universitários, trabalhadores e sindicalistas – exatamente como fazia a dinastia Somoza.

Vários heróis da falecida Revolução Sandinista estão no exílio ou na prisão. Muitos morreram isolados e pressionados pelo governo Ortega. O padre e poeta Ernesto Cardenal, por exemplo. 

Não há outra classificação para o que acontece lá, e há muito tempo: traição. Uma Revolução bela e luminosa foi liquidada com a fundamental ajuda de Washington, e um de seus principais líderes virou o que virou.

Todo e qualquer traidor será sempre uma figura abjeta, imunda e desprezível.

Há, porém, traidores mais abjetos, imundos e desprezíveis que outros.

Daniel Ortega, por mérito e brilho próprios, é um exemplo perfeito dessa segunda laia.

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