Uma fenda na muralha transatlântica

"A cooperação pragmática com a China, Rússia, Índia, o Brasil e com todos os emergentes é uma necessidade para que a crise possa ser superada", diz Marcelo Zero

Chanceler alemão Scholz com presidente da China Xi Jinping em Pequim 4/11/2022
Chanceler alemão Scholz com presidente da China Xi Jinping em Pequim 4/11/2022 (Foto: Kay Nietfeld/Pool via REUTERS)


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A visita relâmpago de Olaf Scholz à China provocou trovoadas na Alemanha e na ordem mundial.

O Acordo de Coalizão, firmado por Scholz para governar, previa um recuo crítico nas relações bilaterais Alemanha/China. 

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Com efeito, o acordo previa a continuidade da cooperação bilateral, mas apenas “naquilo que fosse possível” e estritamente com base “na proteção dos direitos humanos e no direito internacional”. Ademais, o texto político acordado demandava também a não implementação do acordo de investimentos entre a União Europeia e a China, propugnado por Merkel, em 2020, e mencionava a necessidade de se reduzir a dependência, em relação a Beijing.

Para arrematar, o texto tecia considerações políticas sobre conflitos territoriais chineses, especialmente com Taiwan, assinalando que tais conflitos tinham de ser resolvidos por “acordos entre as Partes” e com base na lei internacional. Considere-se que, para Beijing, Taiwan é China. Ponto final.

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Em outras palavras, o Acordo de Coalizão, seguindo as diretrizes emanadas dos EUA, recomendava que a Alemanha, assim como toda a Europa, reduzisse drasticamente o patamar de suas relações com a China, além, é claro, de também desconstruir a dependência energética, em relação à Rússia.

Entretanto, essas concessões político-ideológicas à nova Guerra Fria imposta pelos EUA esbarram em um ator que não negocia: a realidade. 

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Cerca de 40% de todos os carros alemães são vendidos na China. No caso da Volkswagen, esse número é de 50%. Em outras palavras, sem a China a principal indústria alemã entraria em colapso. 

A Basf, maior empresa do setor químico do mundo, a qual investiu 10 bilhões de euros numa planta na China, prevê que, em breve, dois terços de seu faturamento virão daquele país.

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Além disso, cerca de 50% de todas as empresas industriais da Alemanha dependem fortemente de bens intermediários que vêm da China. Em outras palavras, sem a China, a indústria alemã e toda a economia germânica entrariam em colapso. 

A corrente de comércio (importações + exportações) com a China já é a principal da Alemanha, e cresce ano a ano. A realizada com os EUA vem em terceiro lugar. Assim, a Alemanha não depende somente do gás russo. Depende, ainda, de suas relações comerciais e econômicas com a China.

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Por isso, Scholz foi se encontrar com Xi Jinping acompanhado por 12 dos maiores CEOs da economia alemã. Embora tenha negado, Scholz, premido pela realidade e pela crise, foi a Beijing ignorando o Acordo de Coalizão e as “recomendações” de Biden.

No fundo, trata-se de recolocar as relações entre China e Alemanha, ainda que de forma um tanto dissimulada, no leito natural do “business as usual”, o que, internamente, rompe com o Acordo de Coalizão e, externamente, provoca uma fenda geopolítica na aliança transatlântica entre os EUA e a Europa.

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Mas a questão essencial não tange ao presente da Alemanha e da Europa. Diz respeito ao futuro.

Quem poderia substituir a China como principal locomotiva econômica do planeta e grande investidora, com seus projetos estruturantes?  

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Os EUA, por certo, não têm mais condições de fazê-lo. A União Europeia, enfraquecida pelo Brexit e a crise, tampouco. 

Parece muito pouco provável, portanto, que a Alemanha e a Europa consigam fazer um “decoupling” com a China. O custo seria proibitivo. O futuro pertence a quem adotar uma política externa universalista e pragmática.

Observe-se que muitas empresas alemãs, principalmente automotivas, estão transferindo seus setores de pesquisas e inovação para a China. Por isso, Xi Jinping mencionou, durante a vista, a necessidade de que alemães e chineses cooperem tecnologicamente em áreas estratégicas, como inteligência artificial, digitalização e energias limpas. 

A China deixou de ser uma “fábrica de baixo custo”, que montava, produzia e exportava bens para as grandes companhias norte-americanas, europeias, japonesas etc. Hoje, a China já é uma superpotência, com uma economia complexa e sofisticada, que concorre exitosamente com EUA, Europa e Japão em setores de alta tecnologia. Já é a primeira economia mundial medida em PPP e caminha a passos largos para substituir os EUA como primeira economia mundial medida em dólares. 

Ademais, é o país que investe mais em setores estratégicos para a economia do futuro, como o de energias limpas e renováveis, por exemplo.

Essa nova conformação da economia chinesa e mundial cria fatos concretos e coercitivos que se chocam frontalmente com os imperativos geopolíticos que os EUA querem impor não apenas à Alemanha e à Europa, mas ao mundo. 

Neste século, a ordem mundial mudou radicalmente. É um mundo bem mais multipolar e economicamente desconcentrado, que não cabe mais na Pax Americana.

Assim sendo, a cooperação pragmática com a China, com a Rússia, com a Índia, com o Brasil e com todos os emergentes é uma necessidade para que a crise possa ser superada e o mundo possa resolver seus graves problemas, como a fome, as desigualdades, as mudanças climáticas etc.

Apesar dos temores relativos à dependência com a China e às pressões ideológicas irrealistas e arcaicas dos EUA para que o mundo regrida ao que era no século passado, Scholz e outros líderes europeus parecem saber que não adianta muito brigar com a nova realidade mundial, comprometendo seu desenvolvimento e sacrificando suas populações.

A fenda tende a se alargar.

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