Uma efeméride de 2022, com um pouco de memória política

Breves memórias cinquentenárias por ocasião do fim de ano

(Foto: Marcelo Zero)


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José Reinaldo Carvalho, 247 - Todos os dias às 7 da manhã, como parte das minhas tarefas na TV 247, anuncio e comento uma efeméride. "Em que data e lugar do mundo ocorreu no dia de hoje uma revolução, uma guerra ou nasceu uma personalidade de destaque"? - pergunta Leonardo Attuch, diretor da TV e do site Brasil 247. Num dia homenageio uma figura artística, noutro, um craque de futebol ou um protagonista de façanhas revolucionárias. Frequentemente evoco grandes acontecimentos históricos no Brasil e em terras distantes. Enalteço o bom combate por transformações políticas e sociais profundas, a luta pelo socialismo, os grandes enfrentamentos dos povos e o empenho pela solidariedade, o internacionalismo e a paz mundial.

Um hábito antigo, que herdei do Dom Norberto Sant´anna, Oblata de São Bento, prior do Mosteiro, professor de Português do antigo Ginásio beneditino, em cujas dependências e muros ainda hoje há marcas dos combates entre os primeiros brasileiros e os invasores holandeses. 

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O Ginásio funciona no interior do Mosteiro, onde a imponente igreja seiscentista domina o pequeno promontório a poucos metros do primeiro aldeamento em que Tomé de Souza fundou a gentil cidade de Salvador. Dali se avista a paradisíaca Baía de Todos os Santos (também dos Orixás). Ao longe, a Ilha de Itaparica, cenário das guerrilhas independentistas de 1822-1823. 

O monge exigia aos alunos boa redação e gramática e valorizava os que carregavam no Latim com declinações escorreitas. Fazia parte da sua didática levar os alunos a compor dissertações e treinar retórica, exercícios nos quais interpretávamos acontecimentos relevantes, entre eles o assassinato de Kennedy e a rebelião de 68. Nos claustros do Mosteiro foram acolhidos e permaneceram escondidos militantes de esquerda perseguidos pela ditadura. 

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Por coincidência, herdei o hábito da evocação de efemérides também dos meus primeiros dirigentes clandestinos dos inícios dos anos 1970, que abriam reuniões de comunistas aludindo a datas históricas.                                              

Não poderia terminar o ano de 2022 sem registrar a mais importante efeméride de minha vida de militante comunista, combatente pelas mais elevadas e sagradas causas dos trabalhadores e do nosso grande e querido povo brasileiro. Não o fiz em tempo hábil, em meados do mês de outubro, porque encontrávamos todos imersos na mãe de todas as batalhas deste turbulento e também glorioso ano, que se encerra com uma vitória épica, a eleição do Presidente Lula, o maior líder popular da história do Brasil, que conquista seu terceiro mandato para restaurar a democracia, os direitos do povo e a soberania nacional, vilipendiados pela extrema direita que assaltou o poder no país na sequência do golpe de Estado de 2016.  

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A efeméride que trago hoje talvez seja irrelevante para o público, pelo que peço desculpas se o ocupo com algo que pareça tão pessoal. Mas é na verdade a homenagem a uma causa, a uma luta e ao esforço de gerações pela construção de uma vanguarda revolucionária para a emancipação nacional e social do povo brasileiro. 

Vamos a ela, a efeméride do meu coração. Há exatamente 50 anos ingressei nas fileiras do Partido Comunista do Brasil. Naquela ocasião, tomei um verso – “É preciso o Partido em tempestade” – de um poeta até hoje clandestino para mim, como um mandamento de vida. Como escrevi na epígrafe do livro “Comunistas no Brasil – 100 anos” (*), dedicado ao centenário de fundação do Partido, “o PCdoB é a minha alma mater”. Com efeito, é a minha universidade, a fonte do meu aprendizado, o lugar onde fiz meu batismo de fogo e prossegui em combates e batalhas pela realização dos mais elevados anseios da humanidade – a construção de uma sociedade próspera para todos, avançada, culta, progressista, harmônica e pacífica – o socialismo. 

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Com a ideia de que “é preciso o Partido em tempestade”, uma geração de jovens comunistas enfrentou a quase impossível tarefa – nas condições de dura clandestinidade, imposta por um regime de generais fascistas e facínoras – de construir política, ideológica e organicamente um partido comunista revolucionário, de classe e de combate.

Um documento do Comitê Central da época, contendo orientações táticas para enfrentar a ditadura, que acabara de entrar na sua fase terrorista, fazia-nos um veemente apelo: “Preparar o Partido para as grandes lutas”. E esta se tornou a ideia-força da minha vida, da nossa vida, dos da minha geração. 

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Centenas de nossos camaradas foram presos, torturados e assassinados. Destaco a saga heroica dos dirigentes mortos nos cárceres, os que caíram em combate ou em meio à realização de tarefas clandestinas. Maurício Grabois, Pedro Pomar, Carlos Danielli,  Ângelo Arroyo, João Batista Drummond, Lincoln Oest, Lincoln Bicalho Roque, Osvaldão, Elenira e todos os jovens guerrilheiros do Araguaia. Presentes! À sua memória inclinamos nosso estandarte vermelho com a foice e o martelo e cerramos nossos punhos. Em seu nome, vale reafirmar que das nossas mãos esta bandeira jamais cairá. 

Reverencio também a memória do camarada João Amazonas, que dirigiu a construção do Partido durante 40 anos e lutou para que não caísse das mãos dos seus sucessores a bandeira revolucionária e que estes prosseguissem a obra de edificar e fortalecer o Partido Comunista em todos os aspectos - político, ideológico e organizativo, por cima de quaisquer circunstâncias. Seu pensamento e obra são de grande serventia na luta contra o oportunismo de direita nas fileiras do Partido e um antídoto contra o liquidacionismo e a deserção.  

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Dizia o velho comunista que erros políticos passavam, mas desvios ideológicos não. Haveria momentos de orientações equivocadas no terreno tático, perfeitamente corrigíveis. Mas a renúncia aos princípios ideológicos seria fatal. O compromisso da nossa geração foi o de que nunca defraudaríamos. Os que assimilamos os seus ensinamentos renovamos a disposição de lutar e resguardar as forças de vanguarda da luta pelo socialismo das tendências em voga de apagar a identidade comunista do Partido, mudar sua denominação e simbologia e diluir as fileiras em alguma formação política dita socialista, uma gelatinosa organização de centro-esquerda.   

Não posso deixar de mencionar, ao rememorar os 50 anos atuando nas nas fileiras do Partido, os clássicos e continuadores do marxismo-leninismo, teoria sempre jovem e científica. Sem o estudo de Marx, Engels, Lênin, Stálin, Mao Tsetung, Dimitrov, Enver Hoxha, José Carlos Mariátegui, Fidel Castro, Antonio Gramsci, não teríamos apreendido os fundamentos da ideologia comunista. Devemos ter consciência de que o marxismo-leninismo se desenvolve, atualiza e aperfeiçoa imergindo-nos na ciência, assimilando conhecimentos, mas não somos revisionistas nem ecléticos. 

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Ao comemorar os 50 anos de militância no Partido, vêm-me à lembrança polêmicas e embates de ideias quando lideranças e correntes de opinião, a pretexto de renovar o Partido, propuseram sua extinção.  

Nas condições peculiares de hoje, salta da memória e se escancara diante da atual geração de militantes e quadros a questão crucial o caminho a percorrer para a execução das tarefas programáticas. No Programa que aprovamos, primeiramente na 8ª Conferência Nacional (1995), depois no 9º Congresso (1997), chegamos a uma conclusão dialética. A luta pelo socialismo no Brasil percorreria um ínvio caminho, superaria encruzilhadas históricas por meio de lutas entrelaçadas pela democracia, a solução da questão social e a conquista da soberania nacional. Rejeitamos, depois de aturada reflexão e com conhecimento de causa, visões metafísicas que isolavam a luta política como se esta fosse reserva dos democratas liberais, a social como se fosse um tema privativo dos social-democratas e a questão nacional, que segundo uma visão distorcida, era um corolário do pensamento nacional-desenvolvimentista burguês. Defendemos que as bandeiras democrática, social e nacional se entrelaçavam e as lutas em torno delas formariam o caminho concreto da revolução brasileira e materializariam a palavra de ordem “Socialismo Já”, emanada do 8º Congresso (1992). Importante: essas lutas tinham por foco a ruptura com o sistema político, econômico e social das classes dominantes e visavam à conquista do poder político, caracterizado como uma República de Trabalhadores. 

Esta é uma ocasião propícia também para destacar as datas que representam os grandes feitos da história dos comunistas no Brasil. O 25 de março de 1922 carrega o simbolismo da fundação. O 18 de fevereiro de 1962, o da ruptura com o oportunismo de direita e o liquidacionismo ideológico e orgânico. A rigor, simboliza a refundação do Partido, a retomada de sua construção revolucionária, tarefa que continua na ordem do dia. 

Ao rememorar o recrutamento nas fileiras do Partido há 50 anos, reflito sobre o presente. É mais atual do que nunca a tarefa de construir o sujeito político da luta pelo socialismo no Brasil, o grande exército político de massas da revolução brasileira, com os conteúdos e formas próprios da época presente. Na realização dessa tarefa devemos enraizar-nos nas massas populares, nas forças vivas da nação e manter frutífero diálogo e positiva interação com outras forças de esquerda que têm o socialismo como meta, convictos de que um partido comunista e revolucionário é um instrumento indispensável para os grandes combates do nosso tempo e a realização das grandes tarefas históricas. 

Por óbvio, é uma construção coletiva, que não pode ser confundida com veleidades pessoais, aspirações estreitas, interesses carreiristas de pessoas e grupos. A ideia e a prática do Partido Comunista não começa nem termina na ocupação de cargos institucionais, ainda que isto possa ser útil na medida em que é um entre uma miríade de meios de acumulação de forças. Por esta razão, a adequação dos métodos para uma mais eficiente inserção nas batalhas eleitorais não pode ter como pressuposto a mudança da natureza, da essência, do caráter, da denominação e da simbologia do Partido. 

A vitória das forças progressistas nas eleições presidenciais de 2022 cria as condições para abrir um novo ciclo político progressista no país, com repercussão positiva inclusive sobre o quadro mundial marcado por instabilidade, turbulência e incerteza. Este novo ciclo pode ser mais favorecido pela existência de forças revolucionárias mais capazes, com influência política ampla, capacidade de intervenção política multilateral e multivetorial e de direção das lutas das massas trabalhadoras e populares, com habilidade para fundir num crisol os três vetores principais da acumulação de forças – a luta política, a luta social e a luta teórica-ideológica, numa construção orgânica coletiva consistente. 

Por ocasião do Ano Novo, deixo o meu fraterno e camarada abraço a todos os leitores, companheiros e companheiras, com os votos de plenas realizações e felicidade

(*) Em coautoria com Wevergton Brito, publicado pela Editora Kotter

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