Uma data para não esquecer
Eram cinco e pouco da tarde quando chegou a notícia de que já não, que Allende estava morto e os militares tinham ocupado o poder e todo o resto
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Muitas vezes, me assombro com minha própria memória. Por exemplo: lembro em detalhes o que aconteceu na terça-feira, onze de setembro de 1973 – portanto, há quase cinquenta anos –, e ao recordar sinto ainda um oceano de indignação e dor.
Eu morava em Buenos Aires fazia já um semestre, e dois dias antes havia chegado a Córdoba, a segunda maior cidade argentina.
Capital de um estado basicamente conservador, tinha sido o berço onde explodiu, quatro anos antes, o “Cordobazo”, uma rebelião popular encabeçada por três líderes sindicais de ampla trajetória, Atilio Lopez e Elpidio Torres, do Sindicato dos Mecânicos, e principalmente por Augustín Tosco, do Sindicato dos Trabalhadores de Luz e Força e que foi essencial para derrubar uma ditadura cruel, a do general Juan Carlos Onganía.
Era, pois, nesta cidade de turbilhão que eu estava para uma série de encontros com Agustin Tosco.
Pouco depois da uma da tarde começou um corre-corre. Eram centenas de jovens indo em direção ao correio. Perguntei a dois deles, mal e mal saídos da adolescência, o que estava acontecendo.
A resposta me deixou surpreso: “Vamos nos alistar para ir ao Chile como voluntários defender Allende”.
Vale recordar: era um tempo sem internet, sem redes sociais de comunicação instantânea, sem whatsapp.
Alguém tinha recebido um telefonema contando do golpe que havia começado lá pelo meio-dia contra o governo de Salvador Allende. Pouco depois a notícia estava no rádio e na televisão, se espalhou num átimo, e lá estava eu naquela maré de rapazes, moças, homens e mulheres prontos para cruzar a fronteira e ir defender a democracia chilena.
Eram cinco e pouco da tarde quando chegou a notícia de que já não, que Allende estava morto e os militares tinham ocupado o poder e todo o resto, até o próprio ar que todos respiravam.
Eu havia estado no Chile de Allende um ano antes. Fui testemunha das agruras dos chilenos graças à prolongada greve de caminhoneiros patrocinados por robustos dólares enviados por um facínora chamado Richard Nixon, presidente dos Estados Unidos.
Era de novo Washington se impondo sobre nossas comarcas da América Latina.
Em fevereiro ou março de 1974, não lembro a data exata, voltei ao Chile, desta vez para entrevistar, na mais rigorosa clandestinidade, Jaime Gazmuri, principal líder da resistência não-armada à ditadura sanguinária de Augusto Pinochet e de quem fiquei amigo para sempre.
Foram poucas mas inesquecíveis jornadas de tensão suprema, cuja memória carrego na alma.
A entrevista, bem como duas reportagens sobre o dia-a-dia naquele Chile encoberto das mais tenebrosas névoas, foi publicada mundo afora, num pacote de textos aberto pelo relato sobre os últimos dias de Allende escrito por um colombiano chamado Gabriel García Márquez.
Graças a essa divulgação mereci a honra de ter meu nome inscrito na lista dos inimigos do Chile, elaborada por Pinochet, que teve a prepotência de não ser justo e dizer que éramos, sim, inimigos do seu regime sanguinário, jamais do país que ele seus cúmplices haviam sepultado.
Só no inverno de 1985 voltei à cidade da cordilheira, do morro de Santa Lúcia, de meus amigos e minhas amigas.
Depois de anos de breu e perversidade, era outro país, outra cidade, eram outras as pessoas.
Em tudo que eu via pressentia as cicatrizes daqueles tempos de terror.
Continuei voltando e recorrendo aos passos da minha memória. Mas em nenhum instante consegui esquecer o que senti naquela terça-feira em Córdoba, e nos dias de clandestinidade absoluta nos tempos de Pinochet.
Vinte e oito anos depois acompanhei, à distância, outra violência brutal: o ataque às torres gêmeas de Nova York, também num onze de setembro, o de 2001.
Lembro que quando atacaram a segunda torre, eu me perguntei qual o motivo que levava as emissoras de televisão a insistirem tanto em repetir imagens do ataque. Levei um segundo para entender, assombrado, que eram dois os ataques, dois os alvos, e milhares os mortos.
Foi o mais brutal atentado sofrido pelos norte-americanos em sua própria terra.
Foi a primeira vez que padeceram na pele o que seu país fez e continua fazendo mundo afora.
Para meu assombro, vejo que o mundo registra seus veementes protestos contra os atentados padecidos por Nova York.
Mas são poucos os que recordam, com a mais que justa indignação, o que aconteceu, graças principalmente a um governo dos Estados Unidos, num mesmo onze de setembro, o de 1973, no Chile de Salvador Allende, de Pablo Neruda e da liberdade assassinada.
Em silêncio, torno a mergulhar na memória.
E faço um brinde por aquele sonho chileno, frustrado mas exemplar.
Por aqueles que perderam a vida na defesa da esperança.
Pelo país que podia ter sido e até hoje não conseguiu tornar a ser.
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