Uma carta de aniversário para o Lula

"Como é que este país suporta o pior presidente e o governo mais bizarro (tirando, claro, os anos da ditadura, e ainda assim só por causa da violência e da repressão) de 130 anos de República?", escreve o colunista Eric Nepomuceno. "Como é que vão demolindo tudo, dia sim e o outro também, e ninguém move uma palha para impedir?", acrescenta

(Foto: Rafael Ribeiro)


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Em abril, ou seja, bem antes do aniversário do Lula, meio ano antes, Camilo, filho de meu amigo Paulo Vannuchi, me pediu uma carta dirigida ao Lula, para um site que ele estava fazendo. 

O conteúdo do site, aliás muito interessante, era exatamente esse: cartas para o Lula.

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Hoje, 27 de outubro, aniversário do Lula, repito aqui a carta. 

Não precisei atualizar: cada palavra minha continua valendo, só que com muito mais ímpeto.

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Rio de Janeiro, 20 de abril de 2019

Lula, meu bom amigo:

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Estou há tempos para escrever. Um ano, para ser preciso. Mas só agora consigo. Você vai perguntar como é que alguém que vive do que escreve há exatos 54 anos demora mais de um para escrever uma carta. 

Respondo: às vezes, a mão seca. 

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Cada vez que comecei a escrever para você o que acabava saindo era pura indignação. E eu não queria nem quero mandar para você uma carta irada, por mais justa que seja – e é – essa minha indignação.

Hoje, sábado de aleluia, vamos ver se consigo. Indignado sempre, pelo que fazem com você e com o país. Porém, serenado.

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Não preciso contar o que acontece aqui – me refiro a aqui fora – porque você continua absolutamente informado de tudo. 

Mas conto que nunca, Lula, em nenhum momento, achei que fosse chegar a esta altura da minha vida vendo o que fizeram e fazem com este pobre país. 

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Eu vivi de perto, Lula, golpes tremendos. Vi o Uruguai ruir em junho de 1973, vi o Chile desmoronar em setembro de 1973, lembro de Salvador Allende, vi o terror se instalar na Argentina em março de 1976. 

Tive amigos mortos, tive e tenho amigos que sobreviveram a torturas selvagens, a exílios dolorosos, a distâncias e tempos irrecuperáveis. 

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Eu mesmo passei longos anos sem poder vir ao Brasil. Vi meu filho aprender a ficar em pé e a andar e a falar e a escrever longe do país dele. 

Vivi e vi um monte de coisas mundo afora, Lula. E achei que isso tudo era passado, era memória.

E agora vejo e vivo o resultado de um golpe diferente. Um golpe sofisticado, perfeito: primeiro tiram uma presidenta eleita, depois prendem você, impedem que dispute uma eleição assegurada, e pronto. 

Não há tanques nas ruas, não há trabalhadores e estudantes sendo torturados e fuzilados (exceto, claro, quando são pobres e em sua maioria negros), os grandes meios de comunicação funcionam sem policiais censores nas redações (nem precisa: os patrões e os chefes nomeados a dedo bastam), e tudo parece normal. 

Parece, Lula. 

Mas você, melhor que qualquer um, e eu sabemos que de normal não há nada neste país destroçado, à deriva, rumo a um naufrágio tenebroso. 

Será este nosso país um país sem memória? Espero que não, meu bom amigo. Espero que não, e que desperte rápido desse pesadelo. 

Além da dor e da indignação por tudo que acontece, Lula, ando cheio de perguntas. Por exemplo: como é que puderam votar nessa aberração que todo santo dia deposita o traseiro na poltrona presidencial? 

Como é que essa aberração nomeou esse ministério todo – do qual, aliás, não escapa ninguém – que assombra o país e o mundo? 

Como é que este país suporta o pior presidente e o governo mais bizarro (tirando, claro, os anos da ditadura, e ainda assim só por causa da violência e da repressão) de 130 anos de República? 

Como é que vão demolindo tudo, dia sim e o outro também, e ninguém move uma palha para impedir? 

Olha só, Lula, olha só: achei que estava sereno e que escreveria sem indignação. E não consegui. 

Melhor parar por aqui, mas não sem antes reforçar minha amizade e meu carinho por você, pela sua gente. 

Pensei em sair do Brasil por um tempo, Lula. 

A razão? Conto: em 1977 conheci, no exilio em Madri, um grande escritor argentino chamado Hector Tizón. Ficamos amigos fraternos. 

Certo dia de extrema melancolia, perguntei a ele por que havia saído da Argentina. Não estava em nenhuma organização de esquerda, não tinha vínculos com nenhum movimento, não tinha sido ameaçado. 

E ele me respondeu: ‘Saí por asco’. Asco pelo que faziam no país dele, Lula. E por essa razão – asco, nojo – pensei em sair do Brasil por um tempo.

Mas não vou. De novo, não. 

Vou ficar e resistir com a única arma que tenho, a palavra. 

E assim espero que a justiça seja feita e você volte para casa, e a gente possa enfim se encontrar de novo e pôr a conversa em dia. 

Há muito o que conversar, Lula, muito. E ando precisando.

Deixo aqui, como sempre,

meu melhor abraço

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