Um tsunami no Recife



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No mais recente domingo, uma sobrinha me enviou este recado pelo Face:

“Boa tarde, tio. O senhor pode me passar uma informação segura do vulcão que vai entrar em erupção? Se hoje, agora, eu aqui em casa, tenho que sair? A minha filha, no funeral do avô do marido, ligou pra mim desesperada. Que era pra eu ir pra casa de pai, lá em cima no Alto dos Coqueiros. Mas aí eu relaxei e pensei no senhor que é bem informado”.

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O problema era que, na hora da mensagem, eu me encontrava fora da internet, ouvindo Elis Regina e Tom Jobim. O Recife à beira de se acabar todo e eu ouvindo Águas de Março. Por isso não pude ver a angústia urgente. Quando pude vê-la, a cidade ainda estava sob ameaça, e a sobrinha comentou à noite: 

“O senhor não respondeu. O senhor sumiu. Pensei logo, ele já fugiu!”

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Ela se enganou, é certo, pois não fugi para o Alto. Mas a sua preocupação era real, alimentada pelas manchetes da imprensa on-line do Recife. Procurando pelo tsunami que viria, pude ver no Diário de Pernambuco:

Vulcão capaz de gerar tsunami no Nordeste brasileiro entra em alerta

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“De acordo com a previsão de oceanógrafos, os tremores da erupção serão capazes de criar um tsunami com ondas de até 5 metros que poderão atingir a costa litorânea da região Nordeste do Brasil, incluindo Recife...”

No Jornal do Commercio: 

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Vulcão que pode gerar tsunami no Nordeste do Brasil entra em erupção

“O complexo vulcânico de Cumbre Vieja, na Ilha de La Palma, Ilhas Canárias, entrou em erupção neste domingo. A atividade gerou preocupação nos brasileiros, já que pode atingir o Nordeste...”. 

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Refletindo há pouco, as notícias mais pareciam um novo boato de 1975, quando a cidade entrou em pânico geral, porque teria havido o estouro da barragem de Tapacurá. Sobre isso, o escritor e jornalista Homero Fonseca publicou o livro “Tapacurá: viagem ao planeta dos boatos”. Muito bem. Mas o fato é que esses alertas, do reino das possibilidades exageradísimas, me fizeram lembrar uma peça que escrevi, vencedora de um prêmio que não pude receber. A peça “O Farol da Província” foi premiada pelo Serviço Nacional do Teatro no Concurso Universitário de Peças Teatrais de 1977. Mas como eu não era universitário, eu a inscrevi sob o nome de um amigo que cursava Letras. Quando restabelecemos a verdade da autoria, perdi o prêmio. Não ficou nem o registro no arquivo do SNT.   

Penso que a injustiça diminuirá um pouco se o leitor, desta vez, me conceder o prêmio de uma leitura para esta cena inicial do texto. Foi no tempo da ditadura. 

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“O Farol da Província 

Diálogo entre o editor Penedo e o redator Benzeno.

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Penedo - Você nos expõe ao ridículo.

Benzeno - Por quê?

Penedo - Não se faça de idiota. Como é que o senhor põe em manchete, em letras graúdas e ridículas, nítidas, para que todos vissem e não pudéssemos apagar nosso erro...

Benzeno - O jornal vendeu.

Penedo - .... não importa. Quer dizer, isso é importante, porque traz um maior número   de anunciantes, que vão aumentar o lucro do jornal, que por sua vez pode aumentar o meu salário, quero dizer, o nosso salário, e eu vou poder   consertar meu carro, você vai poder, enfim... (senta-se, põe as mãos na   cabeça, cotovelos apoiados na mesa.)

Benzeno - O jornal há muito tempo não vendia, desta vez, não ...

Penedo - Sim, o jornal vendeu, isso é importante, muito importante, porque ...   (levanta o rosto, olha em torno) mas eu dizia (o redator vai interrompê-lo),   sim, eu já sei que o jornal vendeu, mas por favor preste atenção: o senhor   nos expõe ao ridículo!

Benzeno - Por quê?

Penedo - Não seja cínico. Como é que o senhor bota um fato inverídico como manchete?

Benzeno - Que fato?

Penedo - Tenha pudor. Isso é cinismo. Um crime. Um lesa-consciência!

Benzeno - Lesa o quê?

Penedo - (Rápido, não querendo perceber a pergunta, cada vez mais querendo acreditar no próprio discurso) Um atentado perpetrado contra os nossos mais altos  objetivos, que são, a saber: informar, instruir, construir. Nós somos a voz da comunidade, os olhos, os ouvidos, o olfato, o tato desta cidade. Mas o senhor, não. Levianamente, ligeiramente, destrói todos os nossos sentidos. Sem mais nem menos, isto! Não me interrompa. Sem mais nem menos o senhor estampa isto: "SARNA ATACA A CIDADE DO RECIFE". (Levanta-se   e senta-se.)

Benzeno - É mentira? Veja bem, isso não pode ser verdade? Veja se não é possível: (começa a contar nos dedos) lá em casa fomos todos atacados por sarna; tenho dois ou três vizinhos que andam se coçando; eu mesmo, ó (põe as mãos dentro da calça, e com elas embutidas dá-se vigorosas coçadas), eu já não me suporto. Já tentamos tudo. De sabão a líquido antipruriginoso. Com licença, vou lavar as mãos. (Sai.)

O editor fica de cabeça baixa, olhando os próprios dedos.

Benzeno (na volta) - O que é que provoca a sarna? Falta de condições de vida. A nossa cidade está inchando, vem gente de todo interior, de todas outras cidades nordestinas vêm para o Recife, para o mangue, sem as mínimas condições de higiene, sem saneamento... (Triunfal) é natural que surja a sarna.

Penedo - Mas   eu até hoje não soube que houvesse uma praga de sarna no Recife. O senhor está indo longe demais. O senhor está trocando um fato que pode acontecer por um fato acontecido de fato. Não sei se fui claro. Vai uma grande distância entre o povo poder andar se coçando e o povo se coçar de fato. Vai uma distância maior ainda entre a sua família estar acometida de sarna, o senhor (faz uma cara de asco) andar por aí com esses dedos imundos, untados de sebo, sebosos, e toda a população agitar-se num monstruoso coça-coça.

Benzeno - Um momento. Eu dei a notícia (em voz baixa, doce): "Sarna ataca a cidade do Recife". Não dei essa extensão que você está dando (ergue os braços, arregala os olhos, levanta a voz, com tom de anunciador de mercadoria na feira): "Um monstruoso coça-coça". É diferente. A sarna atacou a nossa cidade. Defendamo-nos.

Penedo - A sarna não atacou coisíssima nenhuma. Tenha vergonha. Tenha princípios. Um mínimo de decoro. Incidentalmente, dois ou três indivíduos, como em qualquer cidade do mundo, foram golpeados por sarna.

Benzeno - Dois ou três indivíduos, uma ova. Tem gente se coçando que não é brincadeira. (Coça-se.)

Penedo -  Pare de ser burro. Não tergiverse.

Benzeno -  Terge o quê?

Penedo -  Tenha vergonha. (Em outro tom.) Suponha dez por cento. Em uma população de um milhão de habitantes, se cem mil indivíduos estão se coçando, isso é insignificante.

Benzeno - É uma calamidade.

Penedo - Foi um exemplo apenas. O importante é que se deve pensar em nossa imagem. O que é que vão dizer de nossa cidade? Recife, capital da sarna.

Benzeno - O que vende é sangue. O que vende é o sujo.

Penedo - O que mata também, seu Benzeno. Lembre-se de que podemos ser enquadrados. Enquadrados porque estamos intranquilizando a população. Lembre-se da confusão que deu na última cheia. Espalharam o boato que a barragem de Tapacurá havia estourado. Teve gente que morreu do coração. Pense na sua responsabilidade social, seu Benzeno.

Benzeno - O senhor está fazendo tempestade de um copo d'água.

Penedo -  (Exausto.) Pense nas consequências. (Suspira.) Pense na polícia.

Benzeno  (preocupado) - Vamos examinar o que eu disse”.

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