Um julgamento onde os juizes é que deveriam sentar no banco dos réus

Faz tempo que a ideia de justiça no Brasil vem sofrendo transformações, com afrontas à Constituição e graves prejuízos para a democracia, na medida em que as pessoas perdem as garantias e ficam à mercê dos detentores de qualquer parcela de poder



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O julgamento da presidenta Dilma Rousseff, pelo Senado, chega à sua última etapa. Em princípio a notícia sugere que a Presidenta teria cometido algum crime, por exemplo, de desvio de recursos públicos, recebimento de propina, lavagem de dinheiro ou formação de quadrilha, dos quais são acusados justamente parte dos senadores-juízes que a julgarão. Eles é que deveriam estar sentados no banco dos réus e, no entanto, será ela a ré. Por aí já se vê que tem alguma coisa errada no processo de impeachment da Presidenta e, sobretudo, no conceito de justiça em nosso país. É como se um tribunal, formado em parte por bandidos, se reunisse para julgar a sua vítima, acusada do crime de ser honesta. Na verdade, faz tempo que a ideia de justiça no Brasil vem sofrendo transformações, com afrontas à Constituição e graves prejuízos para a democracia, na medida em que as pessoas perdem as garantias e ficam à mercê dos detentores de qualquer parcela de poder. Ninguém mais está seguro, nem mesmo quem recebe um mandato outorgado por 54 milhões de votos. Aquele enunciado constitucional segundo o qual "todo poder emana do povo e em seu nome será exercido" foi lançado na lata de lixo por um consórcio de políticos, juízes e imprensa.

Vale a pena, a título de ilustração, lembrar o que disse Jesus, segundo Mateus 7:1-2: "Não julgueis a fim de que não sejais julgados, porque vós sereis julgados com a mesma medida da qual vos servistes para julgar os outros". O deputado Eduardo Cunha, que é evangélico, deve conhecer bem esse versículo, até porque o está vivenciando agora, depois de ter dado partida a esse vergonhoso processo de impeachment-golpe que está prestes a ter seu desfecho. Apesar das manobras realizadas pelo deputado Rodrigo Maia, presidente da Câmara, em conluio com o presidente interino Michel Temer, para retardar a votação da cassação do mandato do ex-presidente da Casa, numa desesperada tentativa para salvá-lo, mais cedo ou mais tarde ele será obrigado a provar do mesmo remédio que impôs a Dilma, assim como todos os que, direta ou indiretamente, contribuíram para o seu afastamento. Afinal, lembrando ainda palavras do Cordeiro, "toda semeadura é livre, mas a colheita obrigatória". Ninguém planta espinhos e colhe flores. Da Justiça Divina ninguém escapa, nem aqueles que se julgam investidos em poderes sobre a vida das pessoas.

A presidenta Dilma decidiu comparecer ao Senado para fazer a sua defesa, encarando de frente os senadores-juízes, num gesto que revela coragem e disposição, como no tempo em que os cristãos eram lançados às feras na arena. Ninguém pode garantir, no entanto, que suas palavras produzirão algum efeito entre os senadores que já manifestaram o desejo de votar contra ela, independente da sua inocência, pois estão convencidos de que receberão as vantagens prometidas pelo interino nos jantares no Palácio do Jaburu. Eles nem falam nessa história de "pedaladas fiscais", uma invenção dos tucanos para justificar o pedido de impeachment, buscando outros pretextos para convencer a si mesmos da correção do voto. É o caso, por exemplo, do senador Ronaldo Caiado, que declarou à televisão que Dilma "esqueceu de governar para o povo, mais preocupada com a ideologia e a permanência do PT no poder". Só um cabeça ôca, um latifundiário ou alguém envenenado pelo ódio poderia dizer semelhante tolice, porque todo mundo sabe que os governos petistas foram direcionados sobretudo para a população mais pobre. E como falamos na Bíblia, essa posição de Ronaldo lembra o "sepulcro caiado por fora e podre por dentro", segundo a metáfora do Cristo.

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Dilma poderá não sensibilizar seus opositores, mas provavelmente constrangerá aqueles que foram ministros do seu governo e conspiravam pelas suas costas. E hoje a criticam e declaram voto a favor do seu impeachment. Considerando, no entanto, que o cinismo é a marca dos golpistas, é possível que alguns deles não sintam nenhum remorso, depositando seu voto com todo o desembaraço de quem tem o hábito de trair. Ainda assim ela poderá dizer: "Atire a primeira pedra aquele que estiver sem pecado". No episódio bíblico, quando Jesus disse essas palavras, os fariseus que pretendiam apedrejar a mulher se dispersaram, envergonhados, mas não se deve esperar que os senadores façam o mesmo. Afinal aqui, dois mil anos depois do Cristo, usar o mandato para usufruir vantagens se tornou uma prática quase institucional e, portanto, eles devem dizer a si mesmos que não cometeram nenhum pecado e, assim, não têm do que se envergonhar. E na condição de "alegres golpistas", como já se definiu a senadora gaúcha Ana Amélia, depois de consumado o golpe deverão festejar a vitória no Palácio do Jaburu, onde receberão os 30 dinheiros.

O fato remete a outro episódio semelhante, ocorrido em 1889, quando o imperador Dom Pedro II foi destronado também mediante um golpe, só que naquele ano executado pelos militares, que proclamaram a República. O imperador, que não reagiu para evitar derramamento de sangue, foi imediatamente expulso do país, sem ter praticado nenhum crime, sendo obrigado a viajar às pressas para Portugal. Dom Pedro ficou mais amargurado porque os líderes do golpe foram precisamente os militares que desfrutavam da intimidade do seu palácio: Benjamin Constant, Floriano Peixoto e Deodoro da Fonseca. Dois jornalistas ainda impetraram um habeas corpus em seu favor, para que ele permanecesse morando no Brasil que tanto amava, mas o Supremo Tribunal Federal negou-o sob a alegação de que, como havia sido banido, o imperador não tinha mais direito aos benefícios das leis brasileiras. Em soneto escrito no exílio, pouco antes de morrer num quarto de hotel barato em Paris, Dom Pedro II disse, num desabafo que poderia ser feito também por Dilma:

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"A dor que excrucia e maltrata,
A dor cruel que o ânimo deplora,
Que fere o coração e pronto mata
É ver na mão cuspir à extrema hora
A mesma boca aduladora e ingrata
Que tantos beijos pôs nela outrora"

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