Um infiltrado na multidão dos patriotas
Crônica de um infiltrado de esquerda nas manifestações “patrióticas”
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Fidel Carlos era um comunista nato. O seu nome de batismo já era uma homenagem que o pai, seu Ivo, um advogado criminalista muito respeitado na baixada fluminense, havia feito ao grande líder político cubano. Carioca, nascido no subúrbio da cidade e portador da peculiar gaiatice e do humor sagaz que caracteriza a personalidade dos seus conterrâneos, Fidel decidiu que se disfarçaria de bolsonarista por um dia e acompanharia de perto as manifestações contra a vitória de Lula e a favor de uma intervenção militar. Camisa da seleção brasileira no corpo, óculos escuros na cara e uma bandeira do Brasil nas mãos, lá ia ele, aproveitando-se da sua boa pinta de patriota, um misto de banqueiro do jogo do bicho e sargento do Exército, em busca de aventuras naquele mundo paralelo que, até então, ele só via pela TV.
Logo ao chegar à manifestação, que acontecia em frente à sede do Comando Militar do Leste, bem ao lado da Central do Brasil, ele ouve uma estrondosa e estranha comemoração. Curioso para saber do que se tratava, ele se aproxima de um sujeito vestido de Napoleão Bonaparte e que estava envolto em uma bandeira de Israel e lhe questiona:
- Qual o motivo da comemoração, meu caro patriota?
- As forças armadas acabaram de determinar a prisão em flagrante do ministro cabeça de ovo do STF, por fraudar as eleições e favorecer o comunista do PT. Selva!
Perplexo com que acabara de ouvir e contendo o riso para não ter a sua identidade revelada, Fidel limitou-se a responder:
- Grande dia! Selva!
- Agora é esperar a corte marcial dos USA determinar a sua extradição como prisioneiro de guerra; completou o homem que pontuava todas as frases com um frenético: “Selva! ”
Fidel quis saber mais detalhes sobre a operação e o translado do odiado ministro:
- Ele será julgado nos USA?
- Sim. O presidente Donald Trump também quer a cabeça de ovo dele numa bandeja. Selva!
Fidel pensou em alertar o sujeito de que o atual presidente dos USA era Joe Biden, mas percebeu que seria em vão e preferiu seguir alimentando a fantasia daquele idiota, digo, patriota:
- Que maravilha! Com o Trump na jogada ele não escapa. Vamos fuzilar todos esses comunistas da Ursal e do Foro de São João.
Foi corrigido pelo sujeito:
- É Foro de São Pedro, amigo!
Mas manteve a sanidade própria para o momento:
- São João, São Pedro, São Antônio, não importa. Todos eram comunistas e organizavam quadrilhas disfarçadas de festas juninas com o dinheiro da lei Rouanet.
Conquistou o sujeito que logo quis saber o seu nome:
- Qual a sua graça, nobre patriota?
- Olavo Carlos. Uma homenagem do meu pai ao grande professor Olavo de Carvalho.
O sujeito foi ao delírio e prestou-lhe continências:
- Prazer, Olavo! Eu sou o Estefânio. Uma honra ter um patriota com o seu nome ao meu lado nessa batalha contra as forças do mal lideradas por Che Guevara e Mao Tse Tung.
Fidel retribui a continência e emendou:
- Intervenção Militar, já!
Enquanto seguiam a troca de gentilezas, outra explosão de alegria tomava conta da multidão patriota presente ao local
- O que foi agora? – Perguntou Fidel
Uma senhora com uma blusa escrita “Deus fez Adão e Eva. E não Adão e Ivo” e que segurava uma bandeira do movimento integralista brasileiro, se apressou em responder:
- Parece que prenderam o professor esquerdista Paulo Freire. Aquele que estava ensinando ideologia de gênero nas escolas.
Estefânio já não conseguia conter a sua felicidade com a notícia, quando a confirmação da prisão do educador veio através do caminhão de som dos manifestantes:
- Atenção, pessoal! Cumprindo um mandado de prisão expedido pelo senhor Herculano Quintanilha dos Santos Silva, advogado, brasileiro, desquitado, residente na praia de Jurerê em Santa Catarina, acaba de ser efetuada a prisão em flagrante do educador comunista Paulo Freire, por incentivo a pedofilia e por ter adotado o ensino da ideologia de gênero nas escolas.
A massa de manobra foi ao delírio. Parecia até final de copa do mundo. Gritos de “Obrigado, meu Deus” e “Viva Ustra” eclodiram pelo ar feito o som das granadas que Roberto Jefferson atirou contra os policiais federais que foram prendê-lo. Mesmo contendo a gargalhada que insistia em trai-lo, Fidel não saiu do personagem e manteve o clima de loucura lá em cima:
- Agora só falta prender o Karl Marx.
Estefânio deu esperanças:
- Os militares já estão na cola dele. Acabei de receber um informativo no grupo de Whatsapp. O cerco está se fechando. Selva!
As horas vão se passando e aquela multidão de patriotas se mantinha impávida e colossal no seu propósito de anular as eleições e ver as forças armadas intervindo no governo do país. A essa altura, Fidel já tinha se distanciado de Estefânio e se aproximado de um casal de patriotas vestidos com a camisa da Havan, que faziam uma saudação nazista enquanto cantavam o hino nacional. Aquilo já era demais para ele, mas ficaria pior quando exigiram que ele também fizesse o gesto.
- Não vai erguer o braço em saudação à nossa bandeira? – Perguntou o homem.
- Gostaria, mas não posso. Acabei de deslocar o ombro ajudando a espancar um petista que estava infiltrado no nosso meio.
Os olhos da mulher brilharam:
- Nossa! Que heroico! Espancar petistas é a maior prova de amor que um brasileiro pode dar a sua pátria. Ele morreu?
Fidel, sentindo que não poderia frustrar a expectativa daquela cidadã de bem, respondeu:
- Foi levado para o hospital, mas duvido que sobreviva.
- Uhuul! – Vibrou ela.
O homem logo lhe ofereceu uma cerveja gelada e quis saber mais sobre aquele patriota que havia impressionado a sua mulher.
- Qual a sua graça, meu jovem?
- Olavo Carlos
- Já sei. Em homenagem ao nosso grande professor Olavo de Carvalho?
- Isso...
A mulher se emociona:
- Vou chorar! Desculpe, mas eu vou chorar! Eu era muito fã do professor Olavo. Ele salvou a minha vida, me libertando do feminismo, do socialismo e do inferno do lesbianismo.
Já estava bom, mas Fidel ainda quis saber mais detalhes:
- A senhora era lésbica, feminista e socialista?
O marido tomou a frente e apressou-se em encerrar o assunto:
- Isso é passado. Ela era lésbica porque ainda não tinha experimentado um homem como eu. Hoje ela está liberta do mal da homossexualidade e do demônio do socialismo.
A mulher complementa:
- Hoje eu luto para que as mulheres não deixem de raspar o sovaco, para que a nossa terra volte a ser plana e para que a nossa bandeira jamais seja vermelha.
E o homem arremata:
- Brasil acima de tudo! Deus acima de todos!
Ainda sob o efeito das merdas que acabara de ouvir, nosso bravo infiltrado é novamente surpreendido por novos gritos de euforia e debilidade vindos da multidão. Pintou um corre-corre, todos no lugar. Era a Cassia Kiss que acabava de chegar. Vestida de Roberto Jefferson, com uma imagem de Nossa Senhora Aparecida em uma das mãos e com um fuzil disfarçado de guarda-chuva na outra, ela regia aqueles patriotas que, cada vez mais inflamados, se esgoelavam e se alternavam aos gritos de coisas que, para qualquer ser humano normal, pareceriam desconexas. Como: ‘’Morte ao aborto! ” e “Minha filha não vai usar banheiro unissex!”
O grupo que acompanhava a atriz ainda exibia faixas com os dizeres: “Quem matou Odete Roitman? ”, “A Raquel é boa! A Rutinha é má! “, “Somos todos sinhozinho Malta” e “Tieta do agreste – Vagabunda comunista”. Para Fidel já estava bom. Já tinha história o suficiente para contar no boteco do Joca, enquanto degustava um torresmo a moda da casa e molhava a palavra com uma cerva bem gelada. O dilema agora seria conseguir voltar para a casa com as estradas interditadas pelos bloqueios patrióticos. Cruzou com Estefânio que estava aos pulos e repetia sem parar:
- Conseguimos! Conseguimos! Conseguimos!
A curiosidade de Fidel quis saber o motivo da euforia:
- Quem foi preso agora?
- O Lula. Acabou! Acabou! Acabou!
Fidel saia dali convencido de que a única intervenção necessária ao país era a psiquiátrica, quando um caminhão que ia em direção a zona norte lhe ofereceu carona.
- Tá indo pra onde, patriota?
- Méier
- Sobe aí. Te dou uma carona. Vou passar em frente ao Norte Shopping. Te adianta?
- Claro! Valeu!
Quando Fidel se dirigia a porta do carona, foi advertido pelo motorista:
- Aqui dentro não! Vai lá no para-brisa. Quero ver se você é patriota mesmo.
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