Um governo não pode operar na defensiva
A articulação política do governo vem se mostrando fraca e as lideranças do governo no Congresso operam de forma subserviente às presidências das duas Casas
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Dentre as várias definições de estratégia prefiro aquela que a define como a “ciência dos sujeitos ativos qualificados segundo o poder e a força que possuem”. A estratégia visa atingir fins e, portanto, não pode ser separada dos meios, do poder e da força dos sujeitos políticos ou militares. A estratégia deve considerar sempre as circunstâncias nas quais os sujeitos agem. Ela nunca é uma receita abstrata. Precisa considerar as relações de força, de poder, as circunstâncias e a conjuntura.
Embora a estratégia não seja uma receita abstrata, ela se constitui de princípios gerais orientadores das escolhas dos sujeitos ativos. Um deles diz que, em regra, um governo estabelecido nunca pode operar na defensiva política, pois ele é o epicentro da força e do poder. Dispõe do maior conjunto de meios de poder em relação aos seus adversários ou inimigos.
O governo Lula começou seu mandato com uma série de definições positivas de retomada de políticas sociais e de fortalecimento das políticas de direitos humanos. Em que pese as resvaladas em relação à guerra na Ucrânia, o saldo das iniciativas na política externa também é significativamente positivo. Na área econômica demorou em indicar um caminho e só agora se projeta uma perspectiva mais clara e promissora com a nova política fiscal.
Mas o governo vem errando em demasia na sua articulação e na direção política. O primeiro erro consiste em não ter clareza acerca de quem é o principal inimigo político. Lula e a presidente do PT sinalizaram, em alguns momentos, que o principal inimigo seria o presidente do Banco Central. Ouvi diretamente de um dirigente do PT que o principal inimigo seria o mercado financeiro. Ora, nem um e nem outro são atores políticos diretos. Um inimigo ou adversário político sempre é um ator político.
Não deveria haver dúvida de que o principal inimigo político é Bolsonaro e o bolsonarismo. Uma das formulações da teoria democrática em voga afirma que no âmbito da democracia e do Estado de Direito não existem inimigos, mas adversários. Ocorre que hoje existem nas democracias forças de extrema-direita que operam contra a democracia. Essas forças precisam ser consideradas como inimigas e não como adversárias. Bolsonaro e o bolsonarismo precisam ser considerados inimigos políticos porquanto operam uma ação política destrutiva das instituições democráticas.
Desta forma, era dever do governo e dos partidos que formaram a frente eleitoral de centro-esquerda definir em sua estratégia a desbolsonorização do Brasil, com a desarticulação dos seus núcleos na máquina do Estado, seu isolamento no Congresso e sua confrontação na sociedade, visando derrotá-los política e ideologicamente. Chega a ser curioso notar que em 2003 o governo Lula adotou o mote da “herança maldita” e que agora não há nenhum mote contra o que representou o bolsonarismo.
O início do terceiro mandato de Lula foi marcado pela ofensiva golpista do bolsonarismo. Se, por um lado, houve uma conspiração de órgãos de segurança e de setores militares em favor do golpe, por outro, houve uma falha generalizada de setores do governo. Foram negligentes ou ingênuos quanto às intenções dos bolsonaristas que se dirigiram à Brasília aos milhares, convocados abertamente com o chamado “vamos para a guerra”. Chamado anunciado livremente nas redes sociais e noticiado na imprensa.
Esta falha de direção política se revela também na inexistência de uma depuração generalizada dos organismos de segurança e inteligência logo no dia seguinte à posse. Mais do que isso: nomeou-se para o estratégico GSI um general inepto, que estava mais para um Sargento Garcia do que para um guardião da segurança do Palácio Presidencial.
O enfrentamento do golpe ocorreu apenas no plano das articulações institucionais entre os poderes, sem que grandes manifestações de rua fossem convocadas em defesa da democracia. Sequer Lula fez um pronunciamento à nação. Parece que não se percebeu a gravidade do que aconteceu: um grupo de radicais enfurecidos, sem maior estrutura de coordenação militar, pôs de joelho as sedes dos três poderes com enorme facilidade.
O ato golpista ofereceu a oportunidade para que o governo e os partidos que o apoiam desencadearem dura, implacável e contínua ofensiva contra o bolsonarismo, inclusive com a convocação da CPI. Ofereceu-se o momento de promover uma ampla guerra política e ideológica. Mas as forças governistas se recolheram aos seus "quartéis" com a serena e confortante sensação de que a Polícia Federal e o Judiciário realizariam a tarefa de derrotar os golpistas. Prender e julgar golpistas, contudo, não significa derrotá-los politicamente.
As forças governistas se esqueceram ou nunca aprenderam a velha lição romana de que se uma guerra é inevitável é melhor tomar a iniciativa de desencadeá-la, levando o mal ao território inimigo e colocando-o na defensiva. Nessas circunstâncias, a iniciativa de atacar permite ampliar as vantagens comparativas. Lula, é certo, deve assumir o figurino do unificador e pacificador do país. Mas um pacificador não é um pacifista. Na história a paz foi conseguida com a espada na mão, com a afirmação do poder, da autoridade, da lei e da justiça.
Foi no remanso das águas do pós 8 de janeiro que os bolsonaristas começaram lentamente retomar a sua política ofensiva: passaram a acusar o governo pelo vandalismo dos palácios, articularam as CPIs do golpe e do MST, adotaram uma tática de guerra política no Congresso e ampliaram a guerra digital, com forte vantagem em alguns meios.
Para quem olha de fora, o que se percebe é que o governo vem operando uma política defensiva, sem um estado-maior dirigente, a mesma situação que ocorreu durante o golpe contra a Dilma. A base militante não tem uma direção política unificada. Isto constitui aquela clássica situação: os dirigentes do PT e do governo são generais sem exército e a base militante é um exército sem generais. A articulação política do governo vem se mostrando fraca e as lideranças do governo no Congresso operam de forma subserviente às presidências das duas Casas.
Diante disso, deve-se temer as CPIs? Sim e não. Sim diante da fraqueza e da tibieza do comando político do governo e do PT. Para enfrentar o extremismo nas CPIs é preciso ter comando e astúcia política. As CPIs devem ser pensadas menos quanto ao resultado que irão produzir e mais como os campos de batalha que elas se constituirão. O problema é quem ditará os termos do debate. As forças do governo não podem aceitar os termos do debate propostos pelos bolsonaristas.
É preciso preparar-se e transformar as CPIs em tribunais de acusação contra as atrocidades cometidas pelo governo Bolsonaro e em defesa da democracia, dos direitos e da dignidade do povo brasileiro. Não se pode aceitar que a CPI esfole o MST. É preciso mostrar quem são os verdadeiros ladrões de terras, os grileiros, os assassinos, os destruidores das florestas e os exterminadores dos povos originários. É preciso que haja um competente comando político para impor duras derrotas ao bolsonarismo nas CPIs, sabendo usar a força política e a astúcia retórica e das manobras segundo as circunstâncias.
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