Um gosto amargo de juventude na boca
O jornalista Mauro Lopes, editor do 247, escreve sobre a volta da ameaça à democracia e às liberdades que parecia completamente afastada do horizonte das gerações de jovens que experimentaram seu primeiro voto em Lula e imaginavam que o país avançaria ainda mais; há um "gosto amargo" que recorda a juventude dos que viveram as duras condições de luta contra a ditadura na boca; agora lutam juntos avós, pais, mães, filhos, filhas e netos
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Sinto um gosto amargo de juventude na boca. É um gosto inesperado. Pode soar estranha a afirmação, pois, diz a regra, na medida em que envelhecemos cultivamos nostalgia dos tempos do pleno vigor -apesar de esta “regra” ser mais um lugar comum que propriamente uma regra da vida. Mas, vá lá. O fato é: este e não outro é o gosto desta hora, quando estamos às vésperas de 28 de outubro e a possibilidade de vitória de Bolsonaro não pode ser ignorada ou menosprezada.
A morte de Herzog foi um dos maiores eventos de minha juventude. Vladimir Herzog. Vlado, foi torturado e assassinado numa cela do DOI-CODI na sede do II Exército em 1975, quando eu tinha 15 anos de idade. Foi um marco no processo que me levou à união com milhares de outros jovens na luta contra a ditadura.
A geração à qual pertenço recebeu o bastão de uma geração de jovens que enfrentou o combate mais duro com o preço de muita prisão, tortura e morte e o passamos para outros que viveram o encerramento da ditadura.
Foi uma juventude intensa, de momentos de grande alegria, encontros e relações carregadas de significado; ao mesmo tempo, reuniões e atividades clandestinas, de convivência com o medo, o risco da prisão, de apanhar na rua da PM a cada protesto, a cada passeata.
O clima era de tanto medo em função da violência da ditadura que nos encontrávamos com os dirigentes partidários nos “pontos”, lugares pré-estabelecidos numa esquina ou qualquer outro ponto de referência público e a conversa acontecia andando, enquanto discretamente olhávamos ao redor, a saber se não estávamos sendo seguidos. Se o dirigente não aparecesse no “ponto”, era sinal de que podia ter sido preso. Se não aparecesse no “ponto” seguinte, era dada como certa sua prisão e todos os militantes a ele vinculados cuidavam de mudar suas rotinas, por vezes mudavam de casa.
Vivíamos assim, sobressaltados. Nosso pão era a utopia e o desejo de liberdade.
Essas gerações de jovens que vivenciaram o confronto com a ditadura acabaram por entregar a seus filhos um país diferente. Filhos e filhas que só experimentaram democracia; como jovens, elegeram Lula e viveram sem medo -em que pese o medo de sempre do massacre nas periferias, no campo, das pessoas que se descobriram LGBTI. Gerações que imaginaram serem os governos do PT o patamar mínimo civilizatório do país e olhavam com esperança para o futuro, imaginando avanços ainda maiores.
Mas há uma sombra que encobre a esperança, o medo volta a rondar e dessa vez assalta os sobreviventes da luta contra a ditadura e os filhos, filhas, netos e netas que saborearam democracia e paz na juventude e no ingresso à vida adulta.
É mesmo um gosto amargo esse de juventude que sinto agora.
Mas, aviso. Não nos sentíamos derrotados mesmo com as prisões e as torturas que nos roubavam pessoas queridas. Lutávamos o bom combate, fazíamos nossa corrida, guardávamos a esperança e a fé num tempo novo.
Não será portanto este gosto amargo que sobe à boca com as pesquisas e as ameaças dos fascistas que irão nos amedrontar.
Avós, pais e mães, filhos e netos estão por todos os cantos lutando. Lado a lado.
Venceremos?
Impossível saber agora. As condições são duras. Mas os que lutam pela liberdade e a paz não o fazem pela certeza da vitória. O que nos move é a justiça de nossa causa.
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