Um amor vermelho como antes
A republicação do conto se faz também como uma pequena homenagem a José Carlos Ruy, o clássico fraterno que nos deixou em 02 de fevereiro deste ano
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Movido por mensagem entusiasmada do mestre Diógenes Afonso, professor de língua portuguesa, republico este conto. A republicação se faz também como uma pequena homenagem a José Carlos Ruy, o clássico fraterno que nos deixou em 02 de fevereiro deste ano. *
Dedicado a Christiane Brito (1959-2020), que partiu, e a
José Carlos Ruy, que muito a amou.
Rita não é bonita nem musa de se apontar à vista desarmada. João escapa de ser feio, no sentido de um homem sem projetos ou rebeldia. Ele tem uma história, longa. Ela, uma história mais curta. Que par improvável seriam, se os seus caminhos não guardassem tantos pontos de contato? Rita, a inquieta mineira de família de tradição, é branca, frágil, culta, de corpo de alta voltagem. João, poeta, foi editor de jornal clandestino na ditadura, e se fez um clássico da cultura socialista. Mas o que deveria vir primeiro, este parágrafo ou o seguinte?
O parágrafo seguinte é este: as diferenças entre eles não se fecham em um fim. Podem se tornar uma promessa, uma reivindicação do direito de amar, como desejam. Os dois enfrentam a transitória vida e as mudanças físicas do tempo sem desespero. Apesar das transformações no corpo, no rosto, não fazem dessa estação refletida no espelho um ponto final na alma. Sem qualquer ilusão, sabem que não são os mesmos de quando possuíam seus 18 anos de impulsividade e força.
– Mas foi tanta força perdida… – João lhe fala.
– Não acho. Foi muita força boa também – lhe responde Rita.
Ela é assim. Rebelde até com os mestres à semelhança de João, embora saiba ter nele um guia desde o tempo em que ela se iniciava no mundo do jornalismo. João responde às suas contestações com um sorriso fino, de paciência, budista, de judoca que faz do ataque sofrido uma resposta que desarma. Ele ergue a mão para ela, mas para um carinho na face que lhe parece a mais linda de São Paulo. Ele quer lhe falar com o gesto apenas:
– Minha mão é aberta para ti à semelhança do meu coração. Eu te quero e te desejo com o meu amor maduro.
Mas Rita não ouve a voz do gesto. Ou não sabe, ou não quer saber de palavras eloquentes desse afago. Ela é, está e se imagina como uma jovem desejável. Faz um movimento nas pernas, que lhe descobre as coxas, que sobe e dobra na cadeira, numa elasticidade inesperada. Assim, por volta dos seus cinquenta cinco anos ela deixa antever a fêmea. “Por que me atinges dessa maneira?”, João se fala. Mais graciosa ela se torna, porque ele adivinha o capricho da mulher que projeta ser conquistada.
– Rita, nós ainda temos a força – ele lhe fala com um sorriso. E quer apenas apenas dizer, se fosse um orador da poesia: “Tu não sabes o quanto ainda posso te amar? Tu não sabes a força que ainda tenho? Tu não sabes o carinho imenso que posso te dar?”
– Mas João, que força? – ela lhe responde. E assim quer apenas provocar: “vamos, prometa os castelos que você ainda pode construir nas nuvens”.
– Rita, eu sei que tenho 75 anos – João lhe fala. E se põe do terraço do restaurante Feijão do Norte, na Galeria, a olhar a cidade de São Paulo. Com vontade forte bloqueia as lágrimas que insistem em fazer orvalho na paisagem. E se cala. E não importaria que chorasse, pois a linda Rita está insaciável. A sua sinuosidade de cobra na cadeira quer a resposta inteira, completa, com todos os castelos para o seu reinado:
– Eu sei que você tem 75 anos … – ia dizer “bem vividos”, mas o recurso da inteligência evitou essa caricata expressão. – Eu sei, o que é que tem? Eu só quero saber qual a tua força.
– Muita!
Rita gargalha. Ele sorri:
– Tenho todas as forças do mundo que eu imaginar – “Sério?”, ele parece ouvir no rosto incrédulo da mulher.
– A tua imaginação não é limitada – ela lhe responde aos risos.
– Claro que não. – E estanca o maldito choro que viria para mal coroar o seu poder de castelos. E quer lhe falar que possui todos os carinhos do mundo, que ele sabe e conhece um kama-sutra que não se narra em imagens de desenho. Ou sendo mais claro: ele imagina possuir um erotismo de ternura, uma ereção feita com a substância do carinho. E que todas as forças hão de vir desse amor sem técnica e drogas de farmácia do capitalismo. Mas como falar coisas tão absurdas, que substituam estímulos artificiais, se não pode resumi-las na frase mais simples “eu te amo, Rita”?
– Então fale. Eu não sou mais sua aluna. Mas quero muito saber.
– Eu precisava estar bêbado. – E João se vê embriagado a falar as coisas líricas que um miserável apaixonado pode falar. Ridículo, risível, maluco. – Eu precisava estar bêbado. – E retira os olhos da rua, da praça ao lado, para não garoar na paisagem. E foge dos orvalhos, e se volta para as outras mesas onde casais jovens bebem e contam histórias, e falam alto, enquanto nele o mais sério é silêncio. Era bom ter a alegria daqueles casais, naquela felicidade de futuro. Mas a mulher que ele ama vem com um teste de prova de atração.
– Fale, que eu escuto.
– Eu sou um homem que não desiste de sonhar, Rita. Escute – e põe as suas mãos de poeta sobre as mãos que lhe parecem tão macias e suaves da sua jovem de 55 anos. – O tesão de mudar o mundo continua. Essa é a minha cabeleira de Sansão, entende?
– Mas isso é um tesão social – Rita lhe fala, e acrescenta sem pudor. –Isso não dá as alegrias da cama.
– Ah, sei – João responde. Faz sinal para que o garçom traga mais uma dose de cachaça. Fica em silêncio vendo os orvalhinhos mancharem a praça. Lágrima com sol, casa a raposa com o rouxinol. Pega o lenço e como se enxugasse o suor passa-o pelos olhos. A cachaça vem e ele mergulha nela com um só gole. Pede outra. Queria fazer uma piscina de álcool para gritar a sua louca humanidade. Ela lhe fala, diante do visível embaraço:
– Eu não quis ofender. Me perdoa.
– Me dá as tuas mãos. Assim, assim – e corre os pulsos de Rita, a palma, os dedinhos tão queridos. – Percebe que meu corpo todo vibra com o teu contato?
Rita ia lhe falar que aquilo era “fogo de palha”, só um surto e fim. Mas teve a dignidade de não obedecer ao impulso. Ela o vê com olhos arregalados, em mistura de admiração e ternura. Ela se pergunta o que há de fazer com aquele amor de outono. Mas evita a palavra “outono”, porque, a rigor, a ela também se aplicaria a estação que não deseja. “É um mundo machista! Por que o homem penetra na velhice depois dos 70, e a mulher, depois dos 50?”.
– Percebo, claro, que você estremece um pouco.
– E você, não?
– Sim, mas… Acho que ainda não podemos nos amar.
– Pelo amor do deus Marx, quando será a nossa idade de amar?
Os dois sorriem. João percebe que ambos estão agora no seu elemento, em uma atmosfera de conforto e carinho. Ondulam naquele ar onde tudo pode acontecer, até mesmo a mais lenta, suave e duradoura elevação. E lhe fala íntimo este poema, que uma vez escreveu sob o nome do poeta Adalberto Monteiro:
Aquilo que amamos
Aquilo que amamos
Deposita-se
Do mais profundo da gente.
E mesmo que o tempo
Empurre esse sentimento
Para o poço
Do esquecimento,
Um dia
Como algo
Que se desprega
Do fundo dos oceanos
Ele salta à superfície
A um amigo, João contará que seu namoro, modo gentil de se referir a seu amor por ela, não se desenvolve porque “a Rita”, nome que ele fala com voz fraquinha e guardada, a Rita precisa de trabalho. Ela precisa de independência financeira, que ela não é mulher de ficar dependente de homem algum. E que ela é uma jornalista de raro talento, brilhante, valorosa. Rita… até mesmo a estranhos não passa despercebida a carga de afeto que ele põe quando pronuncia esse nome. É como se a sua enunciação tivesse poder de corporificar a pessoa, assim como os crentes fervorosos creem na força da invocação. Rita, a Rita, Rita… Ele muda a voz, sussurra, como se tivesse receio de vir a acordar o sono de Rita, como se, com o nome pronunciado sem cautela profanasse a sua santa material, e tanto, que ela não se arrisca a uma viagem de sentimentos. “Rita, ah se soubesses: Tu não terás amor nenhum em nenhum lugar como o que te dou. Uma afeição comunista, vermelha, plena, que te compreenda inteira, onde vais encontrar?”. E o poeta maduro muda a vista para a rua, de tão emocionado. Da rua ele percebe mais a luz, entre sombras. Mas não se entrega. Não está aqui para fazer papel de coitado a pedir clemência. “Sou um homem, pleno”.
– Idade de amar? Não é isso – Rita lhe fala. – É de condição prática. Eu tenho apartamento e netos pra cuidar.
– Também tenho filhos e netos. Mas isso não é impedimento. Vamos renunciar ao que desejamos? Tenho 75, e daí?
– Não é questão de idade.
Ela assim fala e estala os dedos. A idade pesa na sua relutância. Se ela falasse que João era feio, teria muita razão. Ele está calvo e com rugas demais no rosto. Mas isso ela não fala, pela razão mais simples de que João para ela é um mestre. Os orientadores são feios ou necessários? Então. Se ela falasse que João era pobre, nisso ainda estaria certa. Esse é um dado claro da declaração do imposto de renda. Mas esse não é o ponto, porque João é um homem rico, riquíssimo de erudição e entendimento. Culturas não pagam dívidas, poderia cantar em novo samba. Poderia, mas é melhor não, porque a canção original canta:
Tristezas não pagam dívidas
Não adianta chorar
Deve-se dar o desprezo
A toda mulher que não sabe amar
E ela sabe amar. Se culturas não pagam dívidas, dão um conforto que muitos objetos não têm. Ela sabe.
– Não é questão de idade – ela repete.
No entanto, Rita sonha e alimenta um ideal romântico, de preferência mais jovem que ela, para que não lhe devolva a imagem, um espelho de amor de outono. Mas, contradição, mulher sensível e culta, ela sonha com o sublime e a delicadeza, que não encontra no comum dos namorados mais jovens. Com os belos e recentes não encontra aquele saber da experiência feito. Impossível achar aqueles cuidados que os rompantes juvenis nem sequer adivinham: tocar-lhe a mão, reservar para ela o melhor do seu corpo ou do seu fogo, fazer-lhe os gostos mais excêntricos na cama e fora. No bar, no restaurante, João lhe tem um zelo que não vê nos produtos do amor objetivo, nos semelhantes a filmes pornográficos, da carnal e imediata animalidade. Ela quer o carinho, a atenção, mas sem reflexos da própria imagem com rugas. Onde encontrar um amor tão alto e tão novo, jovem e ao mesmo tempo experiente?
– Não é questão de idade – ela repete.
Parece estar certa. Rita deseja o que o vulgo acha impossível: o vigor, a paixão, a incansável sensualidade e o maduro amor em uma só pessoa. Em que gênio precoce ela encontraria? Que milagre de erotismo acharia em um idoso? Não é questão de idade. É de um outro reino, como um novo idealismo. Como no romance “A mais longa duração da juventude”, numa fala do personagem Zacarelli:
“Na história dos manuais, o idealismo sempre foi posto como uma oposição ao materialismo. E como toda ciência é materialista, o idealismo era a anticiência. Essa oposição é que é metafísica. Lênin já havia observado que muitas vezes o idealismo era mais rico que muita formulação metida a materialista”.
Para amigos comuns, quando quer se mostrar livre e jovial, ela dirá:
– Ele é meu anjo protetor! O melhor companheiro dos últimos anos. Trabalha por todo mundo e para todo o mundo. Tenho que agradecer devidamente. – Mas acrescenta: – Ele lá, eu cá, e tudo acontecendo.
É um amor, antes, é um afeto que ela pretende deixar no reino geral da fraternidade. Nada pessoal. E dirá, para as amigas:
– É que não tem química… Até, tem. Mas é uma outra química, de companheirismo, de companheiro, não é de amante.
Rita não vê que entrou numa idade de outra química. O amor não é mais – impossível continuar a ser – aquele arrojo do agarra-agarra, do suga-suga como um sedento suga água no deserto. Ela não vê que o corpo, com mais sabedoria, poderá alcançar um acento maduro no frescor da estação que se foi. Um fruto de ontem renovado, e de tal modo, que é um novo fruto, não catalogado nos compêndios da botânica.
– Se não é questão de idade, este é o nosso tempo – João retorna, lá no Feijão do Norte. – Podíamos experimentar, o que é que tem?
Experimentar… Rita o olha nada fraterna. Nem química 1, nem química 2:
– No começo é maravilha. Mas depois vem a posse. Isso mata qualquer relacionamento. A posse até parece estar longe de ser abolida, nem os jovens se livram. E eu sou uma mulher livre.
– Rita, eu não me importo. Nem quero saber com quem você anda. Olhe, eu sou comunista.
– Socializa a propriedade?
– Putz. Você me conhece. Na idade em que me encontro, como vou alimentar qualquer pretensão de dominar uma pessoa? Se antes, eu não tinha. imagine. O que eu quero é um rubro roseiral pra você.
Ela reluta e quase quebra o copo de vinho na mesa.
– Mas eu não te amo – ela fala, com mágoa e embargada. Fala e se arrepende no ato do que falou. Como pode atingir assim o seu guru, o seu companheiro de luta, de vida, somente porque ele envelheceu e ficou calvo, e se encontra quase sem ver? Então ela conserta como se pudesse concertar: – Não é isso. Eu te admiro muito. Eu te quero um bocado como pessoa, como camarada. Mas assim, ser companheiro mesmo, de casar, ah, isso é muito diferente. Eu não vou ser falsa com um homem que respeito.
João é resistente. O que fará mais, para onde pender mais na conquista, para a poesia ou para o comunismo? Como escreveria o poeta Adalberto Monteiro em outra circunstância, que João traduz para agora, nesta mesa do restaurante:
Ela é como as andorinhas ardentes
Que voam sem nexo
Ele não é homem de chorar fácil. Mas na sua idade as lágrimas vêm sem controle. Então ele olha de lado, como se tudo pudesse ver entre os vultos na praça. E vê: há sempre uma hora em que o destino de um homem se joga definitivo. Há sempre uma hora em que fala mais alto a ação. Mas como pode ser o seu agir? Subir na mesa e dar um salto mortal de circo? Como poderá ser, se tudo que ele mais fez na vida foi expressar a ação por palavras? Porra, João, age como tu sabes.
– Rita, preste atenção. Houve um dia em que o poeta Thiago de Mello escreveu: “Cinquenta anos são nada para quem põe sua vida na fundação de um milênio”. Pois bem, 75 anos meus, 55 anos teus, são nada para quem põe sua vida na fundação de um mundo no qual a civilização triunfe sobre a barbárie. – E com um sorriso, entre lágrimas: – Me dá a tua mão? Me dá, ou me deixa só para sempre.
Ela recua diante desse anúncio de primavera no outono ou nada. Então o poeta no ardor dos seus 75 anos lhe fala mais claro:
– Quando o mundo novo está em desvantagem, mesmo sufocada a nossa voz deve ousar. Se o futuro é uma dúvida, podemos e devemos mergulhar no transitório.
– Isso é seu? – ela pergunta.
– Eu fiz meu.
– Lindo!
Rita lhe pisca um olho de afeto e de afinidade eletiva:.
– Se é sem posse, sem compromisso nenhum…
– Puro experimento
Ela lhe pisca o olho de novo. E se diz: “acho que ele é um amor vermelho como antes”. Chuva com sol, casa a raposa com o rouxinol. João está rindo e chorando.
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