Um amargo batismo para a aldeia global

O Covid-19 chega em um momento de hegemonia plena do neoliberalismo no mundo



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“Somos nós, pessoas dotadas de razão, as que temos que repensar radicalmente e restringir o capitalismo destrutivo.” Byung-Chul Han, “A emergência viral e o mundo de amanhã”, El País, 2020.

Herbert Marshall McLuhan, filósofo e teórico da comunicação canadense, desenvolveu, no decorrer do século XX, o termo “aldeia global” para descrever um planeta em que o avanço tecnológico no transporte e nas telecomunicações diminui as distâncias, e aproxima de um modo tal a população, que ele pode ser considerado uma aldeia, ou seja, uma comunidade onde todos estão interligados e onde quase não existem espaços desconhecidos ainda por descobrir. Pouco depois, o termo “Globalização” viria a se pronunciar para descrever um processo acelerado em que o predomínio da identidade cultural ocidental iria se atravessar com o resto das culturas e dos povos do mundo. O mundo, de forma cada vez mais acelerada, se definia através do olhar de ocidente, como a extensão final e definitiva da era das colonizações. Essa “aldeia Global” “globalizada” parece ser a instância histórica em que aparece o Covid-19 para abrir assim, através da sua letal presciência, uma nova era da nossa história.

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O Covid-19 chega em um momento de hegemonia plena do neoliberalismo no mundo. Não importa quanto querem nos assustar com o monstro da Coreia do Norte, a aterrorizada Irã, ou o sacrificado Nicolás Maduro. A estrutura mundial atual de poder se define pelos parâmetros neoliberais de um setor de capital concentrado, anônimo, agressivo e que impõe sua vontade sobre estados muito enfraquecidos, ajudado por uma rede de mídias monopólicas que se valem de múltiplos artifícios para dissolver toda forma de construção coletiva de resistência.  Esse capital transnacional, anónimo (ou uma mistura de celebridades bizarras e entes que recuam em se dar a conhecer), tem criado uma eficaz rede de interesses ao redor do planeta, semeando, desde as diferentes redes de construção de sentido (redes sociais, TV, rádios, grandes redes de igrejas) a ideia da acumulação desigual de capital, do domínio patriarcal, e do consumo desenfreado, como três fatores essenciais para a realização da vida humana. O negócio do futebol, um fenómeno que está densamente interiorizado no nosso cotidiano, é um exponente fiel disso. Há anos que vemos como esse negócio pode mudar para sempre a realidade financeira de uma pessoa de baixa renda, de uma forma em que seria impossível de se fazer por outros caminhos dentro do jogo capitalista. Os salários enormes, um  tanto surreais, dos jogadores de futebol, mostram como o sistema, por diversos canais, instaura o conceito de hiper-riqueza e o normatiza constantemente. 

Claro está, esses jogadores de futebol não são os grupos concentrados de capital capazes de amedrontar, desestabilizar ou mesmo derrubar governos através da ação midiática, política e ou judicial (Porque sabemos que cada dia precisam menos dos golpes de estado armados) . Porém, jogadores de futebol, atores de hollywood, apresentadores de TV, funcionam como agentes simbólicos para consolidar o conceito de desigualdade como um elemento essencial à natureza das nossas sociedades. Assim, as elites financeiras, operam à vista de um olhar global que foi em parte seduzido, e em parte amarrado, para não conseguir boicotar o sistema.

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É nesse cenário dominado e ameaçado por essas elites que o Covid-19 aparece. E é diante dessa situação de aniquilação e morte massiva que não escondem seu desprezo pela vida daqueles com os quais coabitam nesse mundo. Em um momento de morte iminente, o capital mostra de forma escancarada sua irracionalidade, histeria e egoísmo. Mesmo que o Brasil seja o exemplo mais patético disto, a situação se repete, com maior ou menor degrau, em todos os pontos do planeta. Não parece casualidade que, dos quatro líderes políticos que no continente americano tiveram atitudes similares de menosprezo pela gravidade da situação: Donald Trump, Jair Bolsonaro, Sebastián Piñera e López Obrador, três fossem os maiores representantes da ideologia neoliberal na região. De fato López Obrador é o único caso de um presidente da asa progressista que tem tomado uma atitude tão desacautelada ante a pandemia. 

Os que detém as maiores riquezas acumuladas estão em silêncio ou pedindo pelo grande sacrifício de vidas humanas, para assim não deter a grande máquina de produzir desigualdade. O sistema está nu, não é mais possível esconder com alienação sua fatal realidade. Sabemos que em esse momento, a máquina neoliberal está imobilizada pela presciência do coronavírus, o que nos dá, quizá, maior tempo de analisá-la antes de que tente novamente praticar uma mutação.   É momento de escrever, de mostrá-la, nua com está, em toda sua anatomia. É momento de inaugurar debates sobre seu funcionamento, sobre seus mecanismos e sub mecanismos mais ocultos e insondáveis. A miséria que já produziu está ali, diante dos nossos olhos. Mas agora, a certidão de que esse capital acumulado poderia salvar vidas de maneira imediata começa a deixar alguns ruborizados. Na Espanha, já existem pedidos viralizados na Internet para que gente da classe frívola (jogadores, atores e apresentadores) façam doações mínimas para os hospitais que hoje não dão conta da situação. “Como reagir ante atores que dedicam tantos minutos para dar discursos de boa moral nas entregas de prêmios e hoje permanecem em silêncio diante do desespero de tanta gente?” Se perguntam alguns espanhóis.

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As pessoas não estão sendo obrigadas a ir trabalhar para melhorar suas opções diante da realidade manifesta. Elas estão indo trabalhar para que o sistema não eleve seus níveis de miséria (já de por sí vergonhosos) ao ponto de torná-lo intolerável. Vídeos publicados recentemente mostram trabalhadores na cidade de Nova York, a cidade mais afetada no mundo, usando o metrô em massa para ir realizar sua função. Nas imagens, dá para ver que sua maioria são afrodescendentes, arriscando suas vidas para manter “serviços essenciais”  funcionando na cidade onde ainda tem lugar o maior empório financeiro do mundo, o temível “Wall Street”. 

Logo do HIV, pela primeira vez na nossa história estamos ante um fenômeno que transcende todas as fronteiras e não vai deixar lugar no mundo onde se resguardar. Pela primeira vez, mundialmente falamos sobre sistemas de saúde e sobre a necessidade de virar um pouco o jogo da distribuição da renda. A diferença com o HIV (que rapidamente se tornou um vírus estigmatizante, em uma sociedade estigmatizante) é que o coronavírus não nos dá um via de escape segura (como seria o cuidado com a transmissão de fluídos no caso do HIV). O Covid-19 funciona como uma espécie de roleta russa. Mesmo quando já sabemos identificar os grupos de risco, ainda permanece indefinido o padrão certo de vulnerabilidade imunológica que tornaria a infeção uma coisa mortal. 

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Esse que certamente será um fenômeno histórico fundamental do nosso tempo talvez seja também o batismo de uma nova era. Temos que dar por descartado o roteiro de Hollywood para esse tipo de catástrofes: isso com certeza não culmina com um emotivo discurso do presidente dos Estados Unidos e com todos nós, de mãos dadas, assentindo com a cabeça e nos culpando por ter perdido a fé no nosso amado patriarca. Não, não será esse o desenlace. As vozes críticas para esse mundo se fazem cada vez mais presentes desde as redes sociais às mídias alternativas. A esperança de que a crise torne as mais influentes mora no peito de muita gente. Em muitos casos, dos donos dos corpos que hoje não tem o privilégio de se resguardar cautelosamente dentro das suas casas. O capitalismo neoliberal está eventualmente imobilizado pelo vírus, e não parece estar muito preocupado em salvar a vida dos mais marginalizados que ainda hoje se sacrificam mais do que ninguém para fazê-lo funcionar.

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