Ucrânia, Chile e Colômbia – guerra e democracia no espaço global
Tarso Genro escreve considerações sobre as novas relações de poder emergentes na América Latina e no hemisfério Norte
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Por Tarso Genro
(Publicado no site A Terra é Redonda)
Byung-Chul Han encerra o seu já clássico livro Infocracia (Penguim, 2021) afirmando que “no Estado totalitário construído sobre uma mentira total, dizer a verdade é um ato revolucionário”. Sua assertiva é coerente com uma brilhante afirmação feita por Yanes Varoufakis, no auge da crise grega, quando disse ser a austeridade não uma política econômica, mas uma fábula moral.
A imprensa mundial está cheia de informações que circularam nesta semana sobre a impotência da democracia liberal para responder aos desafios postos pela globalização financeira do mundo que não encontra nem uma recepção decente no âmbito dos Estados nacionais endividados. Tampouco coalizões políticas capazes de enunciar alternativas que integrem o seu país no mundo, ao mesmo tempo que preservem o trabalho e combatam a fome, a desigualdade e a deserção social.
O primeiro turno das eleições legislativas francesas de 12 de junho registrou uma abstenção de 52,5%, com um índice de 75% entre os votantes jovens. Ao mesmo tempo que a vitória de Gabriel Bóric no Chile e de Gustavo Petro na Colômbia fixam uma nova articulação progressista na América Latina a partir do Chile, Argentina e México. O Brasil provavelmente elegerá Lula presidente do gigante territorial e econômico sul-americano.
Estas vitórias não são das forças tradicionais das esquerdas do século passado. São novas forças políticas erguidas por novas gerações de lutadores, que se afastam tanto da social-democracia tradicional europeia, como das velhas receitas soviéticas que deixaram a América Latina no seu lastro de coragem e dignidade na Revolução Cubana. Hoje, o que dói e espanta a reação política latino-americana é que Cuba exporta médicos e saúde humanizada, não mais movimentos guerrilheiros e assalto ao poder de Estado.
Na página 3 do jornal espanhol El país (18.06.22) repousa a seguinte manchete épica: “Kiév alerta de que só poderá ganhar se o Ocidente acelerar o envio de armas”. Em dois pontos distantes do globo, América Latina e Leste Europeu, estão situados os dois elementos simbólicos mais fortes da tragédia. Nela se batem de um lado o império dos EUA, articulado com a Europa da austeridade, e de outro a velha Rússia despida da sua fantasia de solidariedade proletária, substituída pela defesa da soberania do seu Estado-nação.
O vespeiro nuclear se agita e a América Latina se move no sentido da democracia e da República, território no qual a esquerda abandonou as armas para apostar no Estado de direito, nas eleições periódicas e na republicanização das instituições do Estado. Ninguém pode garantir de antemão de quem será a vitória na guerra da Ucrânia. Mas o que pode ser garantido com todas as letras é que o processo de democratização social e política da América Latina não terá acolhida pelo império americano que insiste em selecionar apenas a quem lhe interessa para os diálogos que poderão definir o futuro do continente. Este historicamente tratado pelos EUA como seu quintal predileto de acumulação privada. Neste momento, a indústria de guerra turbina a economia americana e a União Européia certamente irá preparar uma nova fase de austericídio para recompor sua economia integrada pelas grandes corporações privadas que estão no centro do seu desenvolvimento capitalista.
No final do seu pequeno clássico Zona de compromisso (1992) Perry Anderson perguntou se o progresso ulterior de uma modernidade cosmopolita iria “dissolver ou intensificar” o que outrora fora pensado como característica das identidades nacionais. A pergunta permaneceria em suspensão durante um certo tempo, embora a tendência atual já estivesse visível no horizonte desde os primeiros arroubos fascistas de Donald Trump.
Alguns acontecimentos políticos ao redor do mundo, nestes últimos 30 dias, mostraram a relevância da pergunta de Anderson, já que as grandes políticas dos novos blocos de poder – na globalização financeira dos que governam as nossas vidas – geraram, não uma sociedade cosmopolita acordada entre Estados nacionais, mas uma intimidade pervertida pelo poder do dinheiro que substituiu os nexos ideológicos e os protocolos antigos da Guerra Fria pelas pós-verdades construídas à margem da História.
Fez-se o terreno propício para tentar o cancelamento da democracia liberal, incentivando as aventuras bélicas aparentemente não-ideológicas, para buscar um sentido pragmático, sem mediações, visando atender os que investem na máquina bélica da OTAN. Máquina, como se sabe, destinada não a defender a democracia e a república moderna, mas a bloquear o desenvolvimento capitalista russo, que emergiu com a China como um novo player global, resultante da desintegração do antigo mundo soviético e que disputa sua posição no mundo como Estado-nação capitalista.
As eleições de novembro no Brasil poderão eleger já no primeiro turno um líder progressista da América do Sul que sempre foi um moderado em economia, mas também um democrata radical no bom sentido da expressão, testado em duras batalhas ao longo da sua vida pública. No momento em que o externo e o interno se confundem a cada passo, em qualquer estratégia política realista, Lula terá uma grande responsabilidade. Precisará compreender a diferença existente entre os principais parceiros democráticos da América Latina para compatibilizar as grandes políticas internas de redenção econômica e soberania, com os pleitos de uma inserção cooperativa e autodeterminada no mundo, sem submissão a qualquer polo de pretensão hegemônica, que sempre destina a América Latina ao papel de território cativo para os seus interesses geopolíticos.
Lula já mostrou ao mundo do que é capaz. A coalizão política ora montada em torno de sua figura pública garante que ele poderá unificar o Brasil na busca de um novo destino de soberania e democracia.
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