Triângulo da Tristeza: um clássico sobre as relações de poder e de compra e venda na sociedade
O filme é também um ensaio poderoso sobre a natureza humana, escreve o jornalista Leonardo Attuch
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Afinal, Abigail matou ou não Yaya?
Essa pergunta me persegue desde ontem à noite, quando assisti o filme "O Triângulo da Tristeza", que venceu a Palma de Ouro de 2022 e concorre ao Oscar em três categorias, incluindo melhor filme.
Dirigido pelo sueco Ruben Östlund, o filme satiriza a vida dos super-ricos, que embarcam num cruzeiro de luxo e depois se veem numa ilha após um naufrágio.
A questão sobre se houve assassinato ou não, que o filme não responde, na verdade diz mais sobre nós mesmos. No fundo, é uma questão sobre se devemos manter ou não nossa crença na humanidade.
Na trama, Yaya é uma modelo que, no início do filme, tem um conflito com o namorado Carl, também modelo, após uma discussão sobre quem deve pagar o jantar. Se, por um lado, o homem rejeita a objetificação da mulher, que ganha mais do que ele, ela também se justifica com o argumento de que necessita de um provedor numa sociedade em que seu único valor é a beleza passageira.
Uma beleza que garante ao casal o embarque no cruzeiro dos ricos, sem que tenham que pagar nada por isso. Nesta viagem, um dos personagens centrais é um bilionário russo, que, literalmente, vende "merda". No caso dele, fertilizantes, mas a metáfora poderia se aplicar a qualquer bilionário dos dias atuais. No fundo, no fundo, na sociedade mercantil, todos vendem "merda" em troca de moeda sonante. E o valor que a sociedade atribui a cada indivíduo nesta sociedade em nenhuma hipótese está associado à sua real contribuição para a coletividade.
No navio, há um embate entre o bilionário russo e o comandante, que ocupa sua rotina com o álcool e as leituras marxistas. Após um jantar escatológico, que evoca "O Discreto Charme da Burguesia", de Luis Buñuel, ambos refletem sobre capitalismo e comunismo de maneira absolutamente inusual.
No dia seguinte, quando a situação poderia voltar ao normal, um ataque de piratas provoca o naufrágio que leva alguns sobreviventes para uma ilha, onde ocorre, já na primeira refeição, uma revolução proletária. É quando Abigail, camareira do navio, toma o poder por ser a única pessoa capaz de pescar com as próprias mãos e de fazer uma fogueira. Nesta nova sociedade, sem mais-valia, o trabalho se impõe sobre o capital. E se antes as relações estavam baseadas na lógica de compra e venda, que rege a sociedade capitalista, agora elas passam para o plano senhor-escravo. A tal ponto que Carl, que rejeitava a objetificação de Yaya, se prostitui por alguns pedaços de peixe.
A questão do assassinato ou não de Yaya por Abigail se coloca no momento que esta nova ordem social se vê abalada pela descoberta de que os náufragos podem, enfim, ser salvos, quando se encontra um elevador para um resort de luxo.
Ao longo de todo o período na ilha, Yaya se mostra talvez a personagem com maior humanidade – tomando por humanidade o que nela enxergamos de bom e generoso. Mas ao vislumbrar uma saída da situação de desconforto para o velho mundo regido pelo dinheiro e pela beleza, a modelo diz a Abigail que ela pode ser sua assistente, o que nos traz de volta à questão inicial:
Afinal, Abigail matou ou não Yaya?
(Infelizmente, a atriz Charlbi Dean, que interpreta Yaya, faleceu precocemente, aos 32 anos, três dias antes da estreia do filme).
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