Tornar-se um leitor: a escola do assentamento Milton Santos – MST

O quê é um leitor? Aquele que floresce no encontro dum relato comum.

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MST (Foto: MST/Matheus Alves)


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Este texto nasce de uma conversa - da arte da conversa - com Carlos Salazar e com Liormando José dos Santos, o Lió.

O quê é um leitor? Pergunta-se o escritor argentino Ricardo Piglia (El último lector 2005). Entre as pistas que ele encontra, um leitor seria um relato, alguém que graças às narrações que lê pode encontrar um caminho. Por sua vez, o filósofo colombiano Estanislao Zuleta (Sobre la letura 1982) diz que um leitor é aquele que busca, aquele que procura o que está à espera de ser explicado.  

Afinal de contas, um leitor seria aquela pessoa que persegue seu próprio relato. O melhor exemplo é o de Liormando José dos Santos, o Lió, produtor rural do assentamento Milton Santos do MST, em Americana – SP, quando narra como aprendeu a ler:

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Faz 56 anos, fui nascido e criado na roça, nunca fui na escola. Sou de lá do sertão de Pernambuco. Aprendi a ler com 46 anos, porque fui encorajado pelos fatos. Fui abrir uma conta no banco do Brasil e o atendente falou que não podia abrir conta porque não tinha documento assinado. Aprendi a ler porque fiquei revoltado com isso. Essa recusa me criou mais força e coragem para aprender a ler e escrever”.  

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A adversidade, como adverte Milton Santos, pode despertar forças interiores para organizar uma resposta. Lió aprende a ler, a lutar, a agir junto com outros e nessa movimentação vai trilhando seu próprio relato. Lió nasceu em circunstâncias que já foram narradas - e lidas -, assim como em Os Sertões (1902), Euclides da Cunha descreve todas aquelas crianças nascidas perante as dificuldades e os desafios da história.  

“Atravessou a mocidade numa intercadência de catástrofes. Fez-se homem, quase sem ter sido criança. Salteou-o, logo, intercalando-lhe agruras nas horas festivas da infância, o espantalho das secas no sertão. Cedo encarou a existência pela sua face tormentosa. (…) Compreendeu-se envolvido em combate sem tréguas, exigindo-lhe imperiosamente a convergência de todas as energias.  

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Fez-se forte, esperto, resignado e prático.  

Apertou-se, cedo, para a luta”.  

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Nesta vida, Lió deparou-se perante os signos de uma realidade conturbada, de algum modo sabia ler o mundo desde sua própria experiência, um mundo injusto, mal feito, atravessado de fissuras, em tensão permanente. Não estava alfabetizado, mas já lia as manifestações da realidade. “Quando comecei acompanhar o movimento [MST], quando comecei fazer parte da reunião, dos trabalhos, comecei aprender. Na Escola de Jovens e Adultos [EJA] do MST aprendi a ler e escrever. Minha primeira escola foi o MST. Tudo o que sei hoje aprendi com o MST”.  

Numa altura do relato de Lió algo muda, não é apenas a narração de alguém que aprendeu a ler, suas palavras advertem um encontro especial, é o leitor que começa a se achar no caminho, ele diz: “Eu fui aprendendo ler com a ajuda das professoras do MST, mas não tinha lido nada sozinho, por minha própria conta. Um dia estava na sede do INCRA em São Paulo, esperando ser atendido. Tinha umas revistas na mesa. Peguei uma revista e consegui ler minhas primeiras palavras. Na capa da revista estava escrito: Nelson Mandela. As primeiras palavras que li foram Nelson Mandela”.  

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Pode-se pensar que este encontro com Madiba - como era chamado o líder que combateu o apartheid - faz parte das conspirações que a história vinha forjando sagazmente. Mas o fato do Lió ler “Nelson Mandela” não é apenas obra do acaso, naquele momento ele estava coletando as palavras que o ajudariam ordenar o vivido, a tecer um relato que outorgara sentido a suas próprias experiências. O exemplo de Mandela aparecia também no dia a dia com o MST: não se abdica sem antes lutar, a defesa da vida se faz coletivamente, o trabalho comunitário cria força política, a solidariedade é um antídoto contra a injustiça. Confirma-se assim o que Lió vinha vivendo na sua trajetória vital. A leitura pode dissolver as dúvidas - às vezes criando novas perguntas -, a leitura pode diluir o ceticismo e a resignação, “hoje me sinto um jovem de 25 anos” diz Lió ao sentir as forças coletivas que o animam. “Com 49 anos de idade foi o meu presente de aniversário tirar meu RG assinado, porque eu não sabia escrever”, afirma com orgulho.  

Tudo aquilo que lemos, diz Estanislao Zuleta, converte-se numa linguagem de nosso ser, incluindo a presença daqueles personagens, sejam de ficção ou não ficção, que terminam fazendo parte de nosso caminho, como aconteceu aqui com Nelson Mandela, mas também, com afirma o Lió, com a presença do professor Milton Santos. No assentamento as ideias e exemplo ético e político de Milton Santos germinam junto com as roças. Quiçá isto seja uma demonstração dos caminhos que procuram conexões, envolvendo trabalho solidário e leituras, educação popular e mobilização coletiva, como as plantas que se movimentam na procura da luz.  

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Na conversa com Lió aparece mais uma conexão, mas desta vez é narrada como uma inspiradora descoberta. Neste momento as pessoas do assentamento, junto com a participação de estudantes de Campinas e trabalhadores urbanos, estão construindo a escola Milton Santos.  

 As jornadas de trabalho comunitário, os almoços coletivos, as trocas de alimentos, os mutirões, atuam como a confirmação das ideias do grande geógrafo brasileiro, como, por exemplo, de que as leis escritas no papel não garantem a cidadania, portanto é impostergável a necessidade de defender os direitos e contrariar a exclusão. Estas ações são também uma forma de ler o mundo.  

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A história não é dada naturalmente, é feita pela participação das pessoas capazes de orientar seu curso no tempo. Nessa construção da história, como bem nos lembra Lió invocando Milton Santos, surge mais uma certeza: a solidariedade é capaz de adiar a derrota. Estas ideias e ações foram os primeiros tijolos para a construção da escola. Diz Lió que um dia umas estudantes de geografia da UNICAMP levaram um quadro de Milton Santos para colocar na parede da escola, além de um ato estético, era uma forma de resguardar o espaço pedagógico. “Quando trouxeram o quadro eu fiquei surpreso”, afirma Lió. “O Milton Santos é negro? Perguntei. O Milton Santos é negro que nem eu!”.  

 Aprender a ler também é uma forma de se reconhecer no outro. Ler constrói vínculos, cria aliados, invoca presenças protetoras. Isto supõe também que aquele que lê assume posturas, posições políticas, isto é, não só dialoga com outros e cria relações, também contraria outras posturas e se enfrenta a outras leituras do mundo. Ser um leitor é também participar de uma disputa, quiçá uma disputa pela forma como o mundo deve ser vivido.  

Depois de conhecer o relato do Lió de como se fez leitor, pode-se pensar que Lió terminou lendo o que levava dentro, a vontade irrefreável de justiça, de se recusar a curvar-se, da luta política como caminho à felicidade coletiva, junto com Madiba, com Milton Santos, com Paulo Freire e com muitos e muitas que acreditam nas rotas solidárias.

O quê é um leitor? Aquele que floresce no encontro dum relato comum.  

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