Tiros na memória

O massacre no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, com a execução de pelo menos 20 pessoas, sob o comando do governador Cláudio Castro, junta a fome e a vontade de comer com a política de eliminação de setores da população. Falta de memória e aniquilação, como se verifica, não apresentam estruturas incompatíveis. Em Brasília ou no Rio, a natureza dos acontecimentos não revela sentidos diferentes.

Cláudio Castro e chacina no Salgueiro
Cláudio Castro e chacina no Salgueiro (Foto: Reprodução)


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A recente nomeação do Sr. Ricardo Borda D’Água de Almeida Braga para a direção do Arquivo Nacional, com a única qualificação de ser bom atirador e haver trabalhado na Secretaria de Segurança Pública do DF, além de causar espanto, nos leva a uma reflexão sobre o governo. O Arquivo Nacional é o órgão no qual se guardam importantes documentos da República, representando um ponto de reunião de pesquisadores e historiadores. É, por excelência, o seu local de trabalho. A nomeação provocou uma carta de protesto de mais de 60 entidades, voltadas para a nossa memória e sua pesquisa, com advertências sobre os inconvenientes de um indivíduo sem currículo para as funções. 

Ao final da II Guerra, em virtude dos horrores do nazifascismo, ocupou a mente do público a tendência ao esquecimento. Ninguém desejava reviver a noção de um terrorismo de estado e suas pregações em favor do massacre. Ainda nos anos cinquenta, intelectuais começaram a ver com preocupação esse comportamento. Apesar das dores, era necessário estudar os documentos para, pelo menos, tentar entendê-los. Alain Resnais, em dois de seus filmes (Toute la mémoire du monde, 1956 Toda memória do mundo; e Nuit e brouillard, 1955 – Noite e neblina), causou impacto, com a exibição de fotos e filmes dos campos de concentração. Erguia ali indagações implícitas sobre aquilo tudo, e uma delas em particular: como fomos capazes? O primeiro documentário citado, girando a câmara no interior de uma biblioteca, investia na inteligência de se debruçar sobre livros e sua função, compreendendo a importância da memória para o presente e o para futuro.

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Não espanta que um governo inseguro, pisando em ovos cada vez que emite opiniões, tema a força dos tempos pretéritos, como se antevisse o que estes terminarão por fazer. Sua inclinação, nomeando o Sr. Borda D’Água, talvez aponte exatamente para a vontade de queimar o acervo de documentos como quem, em mais um gesto de assassinato cultural, queima a memória. Observadores da administração pública, nos últimos dois anos, já não se chocam diante do desinteresse frente a um projeto de eliminar a cultura e a ciência, e buscar dirigentes medíocres e pobres de espírito para geri-las.

O massacre no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, com a execução de pelo menos 20 pessoas, sob o comando do governador Cláudio Castro, junta a fome e a vontade de comer com a política de eliminação de setores da população. Falta de memória e aniquilação, como se verifica, não apresentam estruturas incompatíveis. Em Brasília ou no Rio, a natureza dos acontecimentos não revela sentidos diferentes. 

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Os brasileiros eram vistos como um povo alegre e criativo, o oposto da imagem que, de repente, começa a criar em torno de si. Os eventos recentes, com traumas de toda sorte, maculam a velha imagem. Logo, aos olhos do mundo, não passaremos de uma nação de gente frustrada e violenta. Esperemos que isso não se confirme e que voltemos a nos escandalizar com a crueza dos noticiários. Colocar a memória num armário e fechá-la, pode enganar por algum tempo, mas não para sempre. Amanhã teremos o que contar e um dia saberemos punir os responsáveis.

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