Ternura de Eliete faz bem à música e ao Brasil

"Amor à música" espelha períodos em que a cultura e a política se alimentam

Eliete Negreiros
Eliete Negreiros (Foto: Marcos Santos/USP Imagens)


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Por Paulo Moreira Leite

Há algo definitivamente insuperável na palavra bem escolhida, no pensamento exposto com clareza, nos amores desenhados com honestidade. 

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A escrita de Eliete Eça Negreiros, irmã gêmea de seu talento como cantora, é a mesma arte por outros meios, como é possível confirmar pela leitura de seu livro mais recente, "Amor à Música"-- mais que um título, uma declaração de lealdade duradoura e profunda.  

O texto de Eliete fala como ela canta. Voz baixinha, íntima, expressando cada nota musical, cada verso, de um modo suave e doce, de quem não quer nem precisa chamar atenção da plateia nem irá gritar para ser ouvida. 

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Autora de boa  formação intelectual, as cinco dezenas de artigos que compõem o livro  guardam a precisão das frases bem construídas e dos adjetivos certos, sem exageros fora do lugar -- e zero grau de pedantismo.  

Capaz de unir formação acadêmica e música popular, ela foi uma das vozes destacadas do movimento conhecido como Vanguarda Paulistana, que lançou Arrigo Barnabé, Itamar Assunção e o grupo Rumo, num dos primeiros sopros de renovação musical ocorrido no país na aurora da democratização. 

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Doutora em Filosofia pela Universidade de São Paulo, num tempo em que a brutalidade da ditadura de 64 rondava salas de aulas, assembléias e  até mictórios, sem contudo calar mestres brilhantes e estudantes combativos, Eliete teve uma existência entrelaçada pela música popular -- inclusive do ponto de vista acadêmico.

Como pensadora da música popular, fez da obra de Paulinho da Viola um de seus assuntos principais, tema de seu trabalho de mestrado e também do doutorado. A escolha fez justiça a um dos grandes da música popular, até ali menos celebrado do que deveria, mostrando que seu talento não se resume aos grandes sambas que o tornaram conhecido. 

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Como lembra Eliete num dos textos do livro, "Paulinho da Viola teve no choro sua iniciação musical, toca e compõe choros belíssimos". (O próprio compositor comparece numa nota de contracapa, dizendo que os ensaios de Eliete revelaram "intenções e construções encontradas no meu trabalho de músico/compositor que muito me honraram").  

Criada numa casa onde obras-primas da música popular sempre estiveram disponíveis aos interessados, inclusive crianças, em Amor à Música ela recorda momentos inesquecíveis dessa iniciação. 

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Um deles é um LP antológico sobre Noel Rosa -- com a capa ilustrada por Di Cavalcanti, músicas na voz poderosa de Aracy de Almeida, ouvidas com tanta frequência que logo acabou decorando as letras.  

"Cantávamos o disco inteirinho, do começo ao fim, eu e minha mana Bete", conta, descrevendo uma situação  que se repetia em outras famílias, num tempo em que homens e mulheres de classe média se reconciliavam com a cultura popular.  

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Reunindo artigos publicados nas revistas Piauí e Caros Amigos, o livro contém textos de qualidade notável, com observações originais e referências obrigatórias para quem compreende a música popular como combustível de protesto e reflexão sobre o país, em particular  nos momentos históricos. 

"Capinam e o movimento dos barcos" é um texto marcante num total de 52. Referindo-se a uma canção de 1971, momento em que a ditadura encontrava-se no ponto alto de violência e impunidade, enquanto a juventude buscava sonhos possíveis num pesadelo da História, em vários parágrafos o texto de Eliete dialoga com os versos do poeta baiano. 

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Num mundo que vivia um momento de "transitoriedade, transformação, impermanência, descoberta de si, do outro, mudança de costumes", como ela descreve, Capinam canta:   

"É impossível levar um barco sem temporais
e suportar a vida como um momento além do cais
Não sou eu quem vai ficar no porto chorando não
lamentando o eterno movimento,
movimento dos barcos, movimento".  

"Como cantei e toquei essa canção, incontáveis vezes", recorda Eliete, retomando a palavra, para sublinhar o impacto de Movimento dos Barcos sobre uma geração inteira. "Por um tempo foi minha voz, a voz do meu ser, meu hino, meu mantra. Chegava em casa, pegava o violão e ficava cantando. Uma oração," escreve, décadas mais tarde.  

"Amor à música" espelha períodos em que a cultura e a política se alimentam. Num país onde a música popular ocupa um lugar destacado na vida social, os artigos de Eliete Negreiros cumprem a função indispensável de juntar as partes e ajudar a compreender o conjunto, em vez de "ficar no porto chorando não, lamentando o eterno movimento dos barcos".  

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