Temos ódio à ditadura, ódio e nojo

"Caberá à sociedade civil deixar claro, por meio das instituições, que lugar de genocida, adorador de torturadores e assassinos é na prisão. Ditadura nunca mais!", escreve a doutoranda em História pela UFMG Carla Teixeira

(Foto: Reprodução)


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A ditadura militar, iniciada com o golpe ocorrido na madrugada do dia 31 de março para o dia 1º de abril de 1964, foi um grande atraso político, econômico, social e cultural para o Brasil. As manifestações populares que à época pediam a ampliação da cidadania (direito de voto ao analfabeto, elegibilidade de todos os brasileiros etc) e a realização das reformas de base (agrária, urbana, administrativa etc) foram propositalmente chamadas de “comunistas” por grupos conservadores e reacionários – classes médias, profissionais liberais, igreja católica, mídia, grupos de extrema-direita -, contando com o apoio das Forças Armadas que em sua história jamais hesitaram em matar brasileiros para manter a miséria, ampliar a desigualdade social e garantir seus privilégios de casta.

No contexto da Guerra Fria, o objetivo aparente do golpe que destituiu o presidente João Goulart era combater o “comunismo”. Através da mídia e outros espaços de convivência, a população recebeu uma impressão aterrorizante dos comunistas com o intuito de levantar a indignação popular e angariar apoio à solução autoritária. Para tanto, atribuiu-se ao comunismo uma posição de força muito maior que a real. Toda a esquerda foi classificada como “comunista” e a derrubada de Jango (latifundiário que jamais foi comunista nem aqui, nem quando esteve na China) foi vista como “ação preventiva” com o intuito de barrar o avanço dos vermelhos.

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Hoje, após 57 anos, a vasta historiografia sobre o tema nos mostra que o golpe não foi apenas contra “as reformas”, o “populismo” ou o “comunismo”, mas sim para derrotar as esquerdas, aniquilar suas lideranças e impedir a realização de qualquer projeto político que buscasse incluir o povo através de um modelo democrático e popular. Os resultados foram desastrosos e trágicos: assassinatos, corrupção, violência e concentração de renda. Opositores políticos foram sequestrados, torturados e mortos, muitos desapareceram. Uma carnificina: centenas de estuprados, submetidos a choques elétricos, tiveram ratos e baratas inseridos nas genitais e outras práticas violentas executadas por agentes do estado, dentro dos quartéis, com consentimento e aval do Poder Executivo. Até crianças, filhas de “subversivos”, foram torturadas e mortas.  

Por se tratar de uma ditadura, não havia qualquer mecanismo de fiscalização e controle. A corrupção era a regra. As imensas obras de infraestrutura superfaturadas e os benefícios concedidos aos donos das grandes mídias corporativas em troca de um tratamento jornalístico brando, sem críticas ao governo, são apenas alguns dos inúmeros casos capazes de ilustrar a indecência que guiou a gestão pública da ditadura militar. O “milagre econômico” significou o crescimento vertiginoso dos centros urbanos e o consequente surgimento das grandes favelas. A concentração de renda foi explosiva, a desigualdade social subiu como um foguete enquanto a inflação beirou 300%. A censura impôs o atraso cultural, perseguiu artistas, intelectuais, jornalistas e chegou a atingir até mesmo os grandes jornais que apoiaram o golpe. A violência física, política e social resultou num verdadeiro “terrorismo de estado” que tem no episódio do Atentado ao Riocentro mais um exemplo do seu retumbante fracasso.

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Nos anos 1980, o retorno dos civis ao poder foi marcado por acordos de conciliação e acomodação que mantiveram a estrutura política e social intactas. Os torturadores e assassinos da ditadura jamais foram punidos e, até a realização da Comissão Nacional da Verdade, os militares negaram a prática de torturas e assassinatos nos quartéis. O ensino militar e mesmo as corporações não sofreram qualquer ingerência do poder civil, de maneira que as casernas continuaram (de)formando militares com ideias contra a esquerda e as demandas populares, mantendo as Forças Armadas a serviço da extrema-direita e de fanáticos armados que acreditam em fantasias políticas (comunismo) para justificar sua violência ideológica.

Ao promulgar a Constituição Cidadã, em 1988, Ulysses Guimarães bradou “temos ódio à ditadura. Ódio e nojo!”. O “documento da liberdade, da dignidade, da democracia e da justiça social do Brasil” foi um divisor de águas entre o atraso autoritário e o novo período que se apresentava como democrático e republicano. Na prática, muito ficou por fazer e este processo segue inconcluso em nosso país. Após superarmos o atual governo militar, que elogia torturadores e celebra ditaduras, teremos mais uma oportunidade de dar continuidade ao aprofundamento democrático iniciado nos anos 1980 e freado com o golpe de 2016. Para tanto, caberá à sociedade civil deixar claro, por meio das instituições, que lugar de genocida, adorador de torturadores e assassinos é na prisão. Ditadura nunca mais!

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