Tarso, a carta e o "respeito"
"O que -- na minha opinião -- Tarso estimula é a crença em que uma frente político-empresarial controlada pela oligarquia paulista seria capaz de 'ajudar o país'", escreve Valter Pomar, integrante da Direção Nacional do PT
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Tarso Genro escreveu uma carta pública dirigida ao governador de São Paulo, João Doria.
Doria respondeu, com um telefonema.
Que Doria falou para o Tarso?
Não sei, Tarso não contou e Doria pelo visto não escreve cartas.
Mas deve ter sido algo legal, a julgar pelo “textão” que Tarso publicou no Sul21.
Tarso gasta parte do citado "textão" falando de exemplos históricos e autores de um jeito tal que renderiam boa polêmica.
Para quem não leu, Tarso cita, entre outros: o general Santa Cruz, Sócrates, Marx, Prestes e Olga, Vargas, Ênio Silveira, Castello Branco, Norman Mailer, Kennedy.
A referência a Ênio me parece chave: “Ênio Silveira se dirigiu diretamente ao general, sem qualquer ilusão de que ele deixasse de ser o que era – a autoridade máxima de regime de força no caminho de uma ditadura – fazendo das suas cartas instrumentos da luta democrática. Falava com o General como adversário com posições claras, mas sobretudo falava com uma vasta gama de quadros intelectuais e dirigentes políticos, que começavam uma resistência heroica ao novo regime, autoritário e militarizado, que passaria em 68 a uma ditadura militar integral”.
Imagino que Tarso se veja mais ou menos assim: se dirige a Doria, um quadro da direita, para pedir que ele ajude a evitar que as coisas piorem; ao mesmo tempo dialoga com a militância.
Não vou discutir o nobre propósito, nem o meio, mas a mensagem.
Quero lembrar o que Tarso propôs para Doria: “pela sua condição de Governador do Estado mais importante do país, no qual suas classes dominantes têm exercido uma tutela quase plena, há muitos anos, o Sr. detém hoje a legitimidade necessária para – através dos devidos processos legais – desequilibrar o jogo contra Bolsonaro. Pode reunir em torno de si um apoio significativo do empresariado mais privilegiado e rico do país, para defender seu Estado da barbárie negacionista e – por tabela – também ajudar o país: Bolsonaro não pode continuar governando, o Estado está se deteriorando e a aposta dele no 'quanto pior melhor' só favorece os assaltantes do caos”.
Se Tarso trabalhasse no Pasquim, talvez o pedido fosse feito mais ou menos assim: Doria, o senhor e seus amigos poderiam por favor tirar da sala o bode fedorento que vocês colocaram dentro da sala em 2018?
Mas aí estaríamos no terreno do (bom) humor, não no terreno da política.
No terreno da política, o que -- na minha opinião -- Tarso estimula é a crença em que uma frente político-empresarial controlada pela oligarquia paulista seria capaz de “ajudar o país”.
Esta crença tem um pressuposto, que Tarso desenvolve no seu “textão” (uso aspas, pois nada tenho contra textões, muito antes pelo contrário, até porque lê quem quer e eu gosto de ler os textos do Tarso).
O pressuposto de Tarso é: “Bolsonaro, num estágio ´cesarista de poder, sem base social orgânica nas classes mais estruturadas da sociedade, mas presente em todas elas, através de um ´bloco histórico´ que opera – na política – ´cimentado´ por uma ética marginal às instituições do Estado, sem vínculos com qualquer espécie de republicanismo, mesmo aquele mais autoritário. Bolsonaro é a excrescência burguesa mais decadente no poder, compatível com aqueles setores do empresariado – grande, médio, pequeno – que há muito deixaram de ver a nação, mas contemplam apenas seus negócios em ruína ou em dificuldades, em função da nova ordem global, que lhes arrasta a serem funcionários de repasse das taxas de juros da acumulação dos oligopólios financeiros”.
Peço que releiam as frases acima. Notem que numa está dito que Bolsonaro não possui “base social orgânica” nas “classes mais estruturadas da sociedade”; noutra frase está dito que ele está presente em todas elas; e logo depois se diz que ele é uma excrescência compatível com vários setores do empresariado.
Como hoje é 3 de janeiro, vou pular a parte do debate categorial e vou direto ao fulcro: Bolsonaro tem uma forte base social, organizada, estruturada e presente em diferentes classes sociais. Mas seu projeto é, como Tarso mesmo diz, burguês.
Apesar disto, Bolsonaro pode ser derrotado por um setor da burguesia? Pode, claro, embora como o próprio Tarso diz, também possa acontecer dele se reeleger ou coisa pior.
Mas a burguesia vai querer fazer isto? E se quiser, qual o preço que eles vão querer que a classe trabalhadora pague?
A resposta para estas questões pode ser descoberta, penso eu, respondendo a seguinte pergunta feita por Tarso: “como é possível que um país como o Brasil (...) tenha caído tão baixo, a ponto do seu Estado estar próximo da putrefação, sem nenhuma reação das suas instituições republicanas, para retirar do poder o psicopata que nos desgoverna?”
Sugestão de resposta é: alguém precisa fazer o serviço sujo. Bolsonaro está fazendo. Se tudo der certo, em 2022 ou 2026, alguém mais respeitável assume a presidência, sem ter que se preocupar com os “absurdos” que o empresariado e a direita sempre denunciaram na Constituição de 1988 e no Estado brasileiro.
Ou seja: Bolsonaro é "possível" porque foi a solução que restou para a direita e para amplos setores do empresariado, depois de quatro derrotas presidenciais seguidas para a esquerda. E, absurdos e exageros a parte, Bolsonaro está entregando o prometido. Sendo assim, o único que não pode ocorrer, do ponto de vista da direita, é uma saída argentina ou boliviana, ou seja, a volta do PT.
Por isso, Tarso está certo quando defende “estimular” todos os movimentos de “dissenso” contra Bolsonaro”, inclusive os de direita.
Mas está errado quando fala em “respeitar” todos os movimentos de “dissenso” contra Bolsonaro.
Pois respeitar, segundo o pai dos burros, tem no fundamental dois significados: “deferência” ou “obediência”.
Doria, Maia, Baleia e Temer não merecem "respeito", em nenhum dos dois sentidos.
No fundo, o que está em jogo é a independência da classe trabalhadora e a da esquerda.
Na época da criação do PT, nos queriam "respeitando" os liberais, enquanto durasse a luta contra a ditadura.
Se tivéssemos feito isso, os governos Lula e Dilma não teriam existido.
Agora nos querem "respeitando" os neoliberais, enquando durar a luta contra o bolsonarismo.
Se fizermos isso, a única coisa de bom é que haverá tempo de sobra para escrevermos cartas aos coroneis.
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