Tandem
Quando Moro, oportunisticamente, decidiu trair Bolsonaro, com todo o apoio da Globo, muitos vaticinaram que haveria uma cisão significativa na extrema direita. Curiosamente isso não ocorreu
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Várias pesquisas de opinião têm surpreendido os analistas. Os resultados indicam que apesar da irresponsabilidade na gestão da crise da Covid, das grosserias generalizadas, das agressões à imprensa e à democracia, das vinculações do Planalto à criminalidade, Bolsonaro ainda mantém altos níveis de aprovação (ótimo e bom). Um em cada três ou cada quatro brasileiros segue com avaliação positiva a respeito do governo federal, com pequenas variações a depender dos institutos de pesquisa, todas dentro da margem de erro.
Muitos imaginaram que o aumento diário no número de mortos pela pandemia provocaria uma erosão na popularidade do governo. De fato os descontentes aumentaram, mas o que impressiona e inquieta é a constatação de que um terço ou um quarto da população segue apoiando a maneira bolsonara de existir em sociedade.
Quando Moro, oportunisticamente, decidiu trair Bolsonaro, com todo o apoio da Globo, muitos vaticinaram que haveria uma cisão significativa na extrema direita. Curiosamente isso não ocorreu. O traído manteve-se com sua popularidade quase intacta. Moro, no Fantástico, vaidoso e presunçoso, disse que havia levado ao governo o seu prestígio pessoal quando assumiu o ministério da justiça. Certamente acreditava que ao delatar o chefe levaria consigo boa parte de seus seguidores. Os resultados divulgados pelos vários institutos de opinião demonstram que isso não ocorreu. Deixou o ministério e a base de sustentação que imaginava comandar não o acompanhou. Moro, até onde as pesquisas estão a indicar, tornou-se irrelevante para o bolsonarismo.
Lidas em conjunto, as pesquisas apontam que, na faixa dos que tem renda superior a dez salários mínimos mensais, um em cada dois brasileiros consideram ótimo ou bom o governo Bolsonaro. Para cada crítico há um apoiador neste segmento da população. Isso é inacreditável?
O bolsonarismo se sustenta em cinco pilares: os militares, a Direita Concursada, os empresários, os cristãos praticantes e as milícias paramilitares. Dentre essas cinco facções, as duas últimas têm grande influência nos setores populares. Olhemos com detalhes, entretanto as demais três facções, atentos à renda média mensal.
Na cúpula do exército, de capitão para cima, todos têm renda mensal acima de R$ 10.000,00. Na elite do funcionalismo público, principalmente nos concursados para órgãos do aparato repressivo estatal (judiciário, ministério público, polícia federal, advogados públicos, tribunais de contas, entre outros), a grande maioria (a Direita Concursada) se encontra na faixa de vencimentos acima de dez salários mínimos mensais. No empresariado muitos ganham ou ganhavam (antes do Golpe de 2016) acima deste valor. Em conjunto esses setores compõem a classe média tradicional a que se somam, ideologicamente, os emergentes, os que recebem, recebiam ou pretendem receber valores superiores a cinco salários mínimos em média (“empreendedores” mal remunerados, profissionais liberais precarizados, prestadores de serviços sem clientela fixa, entre outros). Não chegam a receber dez mil, mas se comportam e se enxergam como se tivessem esta renda mensal. Nesses três setores da sociedade Bolsonaro mantém 50% de aprovação, que elevariam a média geral de aprovação do governo para algo em torno a 32% do total de nossos compatriotas. Mas sejamos otimistas. Consideremos que ainda haja entre os fanáticos alguns que pudessem se desencantar com o mito. Assumamos que o núcleo duro do bolsonarismo seja integrado por apenas 25% da população.
Haja o que houver, morram quantos tiverem que morrer em decorrência da flexibilização precoce do distanciamento social, esse um quarto da população, cativo da maneira bolsonara de existir em sociedade, seguirá apoiando o governo. São fascistas e não sabem. Não se veem como fascistas. A maioria deles defende a intervenção militar, o AI-5, o fechamento do congresso e do apequenado stf, o armamento da população, a destruição do meio-ambiente, a privatização desenfreada. Mas consideram-se como democratas e defensores das liberdades (haja oxímoros!). São pessoas de direita, defendem o capitalismo embora parte delas seja, objetivamente, dele vítima. Essa parcela da população é caso perdido. Seria inútil tentar convencê-los. Conviveremos com eles durante décadas, em nossas famílias, em nosso círculo social mais próximo.
Ocupemo-nos dos três quartos restantes. Somos a maioria.
Veio-me a imagem do tandem. Aquela bicicleta estranha para duas ou mais pessoas, onde todos pedalam. Sua eficiência decorre da coordenação no ritmo das pedaladas.
Nosso desafio parece ser a construção de uma “estratégia tandem” que se oponha vigorosamente à maneira bolsonara de existir em sociedade. Nunca as condições objetivas para a crítica do capitalismo, e do modo de vida que ele pressupõe, estiveram tão propícias no Brasil. Destruíram os amortecedores da luta de classes. Acabaram com os direitos sociais (reforma trabalhista), desmontaram as políticas públicas para os pobres (teto nos gastos públicos), destruíram as promessas de uma velhice assistida (reforma previdenciária), promovem a morte de dezenas de milhares de pessoas (insistência patronal para a reabertura dos negócios), escancaram o ataque à democracia formal (derretem as instituições). Fiquemos nesses exemplos. O capitalismo se mostra como realmente é, sem mediações, sem véus ideológicos a ocultar sua perversa natureza.
Não basta, todavia, constatar a existência de condições objetivas para a transformação da sociedade. São necessárias condições subjetivas para a mudança, para que as pessoas percebam que há outras maneiras de existir em sociedade. A crítica da realidade adquire relevância e urgência para a formação de um distinto senso comum. A começar pela crítica à apropriação privada e excludente dos meios de produção. Sem criticar o capitalismo não conseguiremos construir a consciência da injustiça da distribuição desigual da riqueza produzida com o trabalho de todos.
Entretanto, lamento constatar, embora inequivocamente presentes as condições objetivas, mesmo que consigamos fomentar as mencionadas condições subjetivas, ainda não teremos uma correlação de forças suficiente para nos contrapormos àquele um quarto da população que se tornou fascista, boa parte dela incrustrada no aparato estatal.
Aqui entra a proposta de uma “estratégia tandem”. Para que a transformação seja possível, para além das condições objetivas e das condições subjetivas, se faz necessário que a realidade concreta seja percebida pela maioria dos três quartos restantes da população como insuportável, como intolerável.
Diversos setores da sociedade estão insatisfeitos. Não é bom viver em uma sociedade como a nossa. Em torno de dois terços da população são vítimas desse “sistema” e, segundo as principais pesquisas de opinião, consideram ruim ou péssimo o governo Bolsonaro e a maneira de existir em sociedade que ele impõe.
Pedalemos juntos, tandemicamente, enfrentando os cinco pilares do bolsonarismo, sem conciliações com nenhum deles. O que mais podemos temer? A classe trabalhadora brasileira só tem a perder os grilhões que a sujeitam a uma maneira horrorosa de viver em sociedade. Tem um mundo a ganhar. Lembra algo?
Falando em tandem, a bicicleta, alguém pode ter lembrado de Cícero, em um de seus célebres discursos ("Quosque tandem, Catilina, abutere patientia nostra") ao pensar no neoliberalismo de Guedes ou no autoritarismo do jaguara e de seus apoiadores. Faria sentido, mas a palavra seria usada em um de seus outros sentidos em latim. Quosque tandem, até quando, relutaremos em admitir que teremos que nos coordenar em tandem para enfrentar essa direita desumana?
Wilson Ramos Filho (Xixo), doutor, professor de Direito (UFPR), integra o Instituto Defesa da Classe Trabalhadora.
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