Superar a ditadura é retomar a agenda interrompida

Na prática, o recado é simples: havendo esquerda com capacidade de governar, seguirão sendo golpistas



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Esta noite, há 50 anos, a Justiça legalizou o arbítrio, após o Congresso Nacional legitimar o golpe ilegalmente, o medo venceu a esperança e o Brasil mergulhou em uma das tantas aventuras políticas promovidas pelas nossas elites. Durante os 26 anos de vigência da Constituição democrática de 1988, tivemos de conviver com uma narrativa adocicada sobre aquele período, originária do tipo de transição que por aqui se fez: lenta, gradual e segura para conspiradores contra a democracia e a Constituição, torturadores e carrascos. Para a cidadania, essa transição é, sobretudo, lenta. E incompleta. Nessa narrativa, que só encontra resistência por meio de canais menos controlados pelo poder econômico, como a internet, promove-se uma fenomenal inversão de valores e justifica-se o golpe como se a intenção que o motivou fosse mesmo a de "salvar o país" de uma intervenção comunista. Sabe-se que é mentira. Sempre se soube. Agora é preciso repor a verdade no lugar da verdade. A democracia, no Brasil, é uma conquista dos que lutam à esquerda no espectro político, porque representa mais direitos, não menos; as elites brasileiras não podem reconciliar-se com a democracia por um único motivo: esta nunca foi um valor para elas. Para tais, o pacto aceitável sempre foi qual regime permitiria acumular mais lucro e poder, da forma menos questionável e mais sutil possível.

A análise do discurso, e sua confrontação com a praxe, é o melhor instrumento para compreensão tanto de um período histórico quanto das forças que movem os acontecimentos nesse dado período. Guardada essa premissa, voltemos um pouco o nosso interesse para um ponto, em especial: o que estava em jogo no Brasil quando se desfechou o golpe de 1964? E o que é que está em disputa hoje? Por que grupos políticos disputam o poder? Quais interesses movem as forças vivas na política brasileira?

Em nossa opinião, o primeiro momento histórico em que a elite brasileira se depara com uma agenda disruptiva, que propunha um modelo novo de sociedade, se dá com a debacle da Velha República, ao fim da terceira década do século passado; posterior a isso, com a ascensão do que se chamou o movimento trabalhista brasileiro lançou-se as primeiras bases de um projeto nacional – coisa que os grupos que dominaram a política até ali não tinha. A força da agenda nacionalista se manifesta até os dias de hoje, é verdade que mais pelas interrupções que sofreu do que pela atualidade de seus conceitos fundantes. Há que se reconhecer, no entanto, que o trabalhismo fundado na Revolução de 30 é a mais bem sucedida força política no Brasil em termos históricos. O PT não seria o mesmo sem esse legado; a esquerda seria outra se essa agenda não existisse com a força que tem. O que se disputava em 1964, portanto, era a inexorável apropriação popular da agenda trabalhista mais avançada, por meio das "Reformas de Base"; reforma agrária, reforma tributária e reforma política eram os pilares da agenda que horrorizou as elites brasileiras. Nada tinham de comunizante. Apenas apontavam para uma inclusão social sem precedentes, até aquele momento, na história do nosso país. A Revolução de 1930 foi feita sem o povo – nas palavras do Governador de Minas Antônio Carlos, era preciso fazê-la antes que o povo a fizesse. Ela, porém, abriu possibilidades antes interditadas às reivindicações populares; e quem sabe teria tido outros avanços se Luiz Carlos Prestes tivesse aceitado o convite de ser o líder militar da Revolução. Não se pode condená-lo por não ter aceitado, no entanto, e mesmo por não compreender ainda, naquele momento, as diferenças substanciais entre o nacionalismo nos países periféricos daquele que forjou as nações centrais. Mudanças estruturais com o povo ocupando a cena pública, como as que se configuravam em 1964, já era demais para as elites econômicas do Brasil e um perigoso precedente para o projeto de dominação estadunidense sobre a América Latina.

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Tão notória, porém, quanto a agenda trabalhista na formação do projeto de desenvolvimento nacional é a incapacidade das elites de contraporem, a este, um outro projeto, qualquer que seja. É que a manutenção do patrimonialismo, das oligarquias e dos privilégios requer, justamente, que não haja projeto algum em implantação ou em disputa; um simulacro de democracia representativa já basta. Assim, a União Democrática Nacional, agrupamento que abrigou as correntes contrárias ao trabalhismo, jamais apresentaram o seu projeto de desenvolvimento nacional mas construíram o discurso pastoso de abertura econômica sem critério de proteção ao interesse nacional e de moralismo exacerbado, em que o "fim da corrupção" torna-se a bandeira que elege notórios corruptos. O pano de fundo desta incapacidade de apresentar-se ao país reside no fato desta plataforma, historicamente, ser inconfessável ante a sociedade.

Voltando aos nossos dias, não é tão difícil reconhecer nos discursos a genealogia política de cada um dos espectros políticos no Brasil; essa genealogia não está diretamente ligada ao posicionamento de cada um no fatídico golpe civil militar de 1964, mas na confrontação que cada um faz da agenda nacionalista. Em seu discurso de posse – a primeira, não a que comprou – FHC deixa claro que, para seu governo, mais que as estruturas autoritárias legadas pelo regime militar, o objetivo era desmantelar os fundamentos do estado "getulista". O primeiro governo de Mário Covas é que reestabelece em São Paulo o culto à quartelada mal sucedida de 1932, tornando 9 de julho feriado e impondo aos paulistas o ridículo de celebrar um movimento em que suas elites foram vergonhosamente derrotadas. Já por esses dias, em que visitamos a triste lembrança dos acontecimentos de 50 anos atrás, são os tucanos que se prestam a relativizar a ilegitimidade do golpe, invocando os mesmos argumentos da velha UDN, de que Jango pretendia um "golpe preventivo" e resgatando termos tão infames quanto o surrado "república sindical". Para Serra, o golpe se tornou "inevitável". Há, entre eles, quem queira inclusive rever o termo ditadura aplicado ao período 1964/85, sob alegação estapafúrdia de que, antes do AI-5 e depois da Lei da Anistia, liberdades relativas caracterizariam um regime "semidemocrático". Não espanta; o pensamento conservador brasileiro sempre trabalhou com a ideia de que a cidadania não é única, nem plena; "meia" cidadania, com a garantia de alguns direitos que não comprometam os privilégios dos estamentos elevados, é algo que pode ser tolerado pelos conservadores. A premissa da agenda tucana é a mesma da agenda udenista: o ódio às conquistas do trabalhismo brasileiro e o pavor de que a agenda nacionalista avance.

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É preciso estar atento, portanto. Tendo as condições objetivas ao seu alcance, as mesmas elites promoverão novos golpes. Não se trata, é certo, das folclóricas e patéticas reedições da "marcha da família, com Deus", mas de um aparato novo e mais complexo, as novas formas de se travar a guerra de propaganda que faz com que o povo que vai ser reprimido e oprimido defenda com convicção o modelo dos que querem reprimir e oprimir. Não há golpe que se consolide, porém, sem uma narrativa apropriada. A narrativa golpista não começa pela História, mas pela política; e a narrativa golpista da política tem como fundamento o moralismo e suas platitudes. Ninguém clama mais pelo "fim da corrupção" do que corruptos levados às tribunas pelos movimentos moralistas.

A "crise" da Petrobrás, a "bolivarianização" do país, o "aparelhamento" do Estado, o "alto custo dos impostos", o "dinheiro enviado a Cuba" por meio do Mais Médicos, a "falta de portas de saída" para o Bolsa Família, tudo isso compõe a "ameaça comunista" de hoje no discurso golpista. E não é preciso dizer que essa narrativa vingou ontem e tem força hoje por conta dos meios de comunicação, território absolutamente dominado pelas forças conservadoras. Donos de televisão ou jornal não perdem nem ganham eleições; estarão aí quem quer que seja o vencedor nas urnas. No Brasil tornaram-se um partido político que participa do poder, qualquer que seja o governo, impondo uma agenda própria – que é o rescaldo da agenda conservadora.

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A agenda dos meios de comunicação, ontem como hoje, pretende produzir a marginalização da esquerda e crises artificiais que permitam subverter as "regras do jogo". O que são os impasses políticos, senão crises fabricadas pela mídia, que colam no senso comum da população pelo fogo de saturação desses veículos? A narrativa midiática do que teria sido o junho de 2013 é um bom exemplo.

A direita brasileira só é democrática sem os "comunistas" - o que pensam ser o PT de hoje, antes o PCB cassado pelo general Dutra e, depois, o PTB de Jango. Na verdade, só topam as regras eleitorais se não tiver partido de trabalhadores forte, com capacidade de governar. Não à toa, os próceres da estratégia de centro-esquerda e do programa realista da Carta aos Brasileiros, que permitiu ao PT ganhar eleições ao governo federal, estão encarcerados. Ontem, os Marines dos EUA se associavam aos conspiradores da FIESP, mídia, alto oficialato das FFAA. Hoje, a S&P, The Economist et caterva, cumprem o mesmo papel.

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Na prática, o recado é simples: havendo esquerda com capacidade de governar, seguirão sendo golpistas. Não aceitam o jogo eleitoral e, muito menos, o Congresso Nacional, mantendo-se o pacto de governabilidade em torno de ações progressistas. Segue atual o que escreveram Darcy Ribeiro e Santiago Dantas, no manifesto do PTB histórico: trata-se de impor a democracia às elites.

Significa também que a esquerda, de sua parte, não pode mais somente reagir; tem que agir, sob pena de ver seu legado ou relativizado, gradualmente, pela renovação de gerações, ou gravemente abalado por crises econômicas e ataques financeiros coordenados (como a nuvem de trilhões de dólares liberada dos governos do G-7 para seus bancos privados). Nem sempre medidas anticíclicas keynesianas vão dar conta de responder a essas crises.

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Agir é completar o desenvolvimento nacional, em sentido estrutural: institucional, jurídico, cultural, social, político e econômico. Para os conservadores, a transição não precisa ser completada; aliás, não deve ser. Para os conservadores, não vale a pena completar o trabalho da Constituinte de 1988, obstruída pelo Centrão, aprovando a eleição de uma Constituinte exclusiva da Reforma Política, por exemplo.

Com o respeito devido aos revolucionários bolivarianos na Venezuela e na América Latina, o Brasil já possui uma agenda e um pensamento para o desenvolvimento nacional desde a primeira metade do Século XX; esse pensamento tem lugar próprio tanto na academia (Caio Prado Júnior, Florestan Fernandes, Celso Furtado, Sérgio Buarque Hollanda) quanto na política (Getúlio Vargas, João Goulart, Leonel Brizola, Lula). Chamar de bolivarianismo ou "ameaça comunista" o pensamento democrático e popular brasileiro é coisa de mentecaptos. Avançar na agenda é garantir um país sem pobreza, com moradia, saúde, educação, pleno emprego e salários dignos; proteger a economia do país para que toda a riqueza nacional possa ser potencializada.

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O golpe não privou o Brasil de liberdade apenas, mas de uma plataforma que faria dele um país melhor, inclusive, do que é hoje. Se o Congresso, por exemplo, tornar aquela infame sessão nula, é preciso dar seguimento prático a isso. E isso quer dizer oportunizar ao Brasil, em eleições, optar ou não por dar sequência, adaptadas ao Brasil de hoje, às Reformas de Base que Jango havia apresentado como proposta à nação e ao parlamento. Temos legitimidade histórica para tanto.

Esta noite, há 50 anos, o medo venceu a esperança; mas ela, a esperança, é algo tão forte e tão arraigado na cultura do povo deste país, que nem a mais longa noite conservadora, com seus vinte e um anos de ditadura, puderam ceifá-la definitivamente. Tanto que os conservadores veem os mesmos fantasmas, ainda, em todos os lugares.

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Artigo escrito com Leopoldo Vieira, secretário do Núcleo Petista de Administração Pública Celso Daniel

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