Sr. Biden: não tente pôr os sapatos da América Latina
"Os sapatos dos EUA não cabem nos pés de nenhum país latino-americano, porque eles são dominadores, e nós dominados", diz Emir Sader
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Não há nada mais grotesco do que os Estados Unidos quererem se colocar no lugar de um país latino-americano. Foi o que tentou fazer Biden, ao propor que o Brasil se colocasse no lugar da Ucrânia.
É certo que na sua recente viagem aos Estados Unidos, o Lula não falava para o Biden. Mas o presidente dos Estados Unidos poderia ter prestado atenção nas palavras do presidente brasileiro.
Lula reiterou que ele não quer mandar armas para a guerra da Ucrânia, porque ele é da paz, quer buscar uma forma de terminar com a guerra e não de prolongá-la. Mas se fez de desentendido. Seu argumento é grotesco: se o Brasil fosse invadido, como reagiria? Queria envolver o Brasil por uma falsa analogia. Daí a pergunta retórica de se o Brasil não poderia calçar os sapatos da Ucrânia.
Lula teria podido perguntar a Biden se ele conhece a trajetória do seu país, expert em invasões de outros países, na sua qualidade de país imperialista por excelência. Poderia perguntar se os EUA poderiam calçar os sapatos da Guatemala, país invadido reiteradas vezes por tropas norte-americanas. Ou do México, que teve partes importantes do seu território apropriadas pelos EUA. Ou da Colômbia, que teve pedaço do seu território apropriado pelos EUA, para formar o Panamá, construir o Canal e se valer dele como sua via de cruzamento de um oceano a outro. Ou no papel do Brasil, do Chile, entre tantos outros, que sofreram golpes de Estado tramados pelos Estados Unidos, que passaram a apoiar as ditaduras militares instaladas por esses golpes.
Os sapatos dos EUA não cabem nos pés de nenhum país latino-americano, porque eles são dominadores, e nós, países dominados por eles. Apenas e tão somente isso.
Os sapatos são muito diferentes, o tamanho dos pés também. Uns usam sapatos, outros usam botas militares. Uns usam os calçados para andar, outros usam botas para ocupar.
Lula poderia convidar Biden a participar do Grupo da Paz, que busca não enviar mais armamentos para a guerra, mas encontrar os termos que possam colocar na mesa de negociações a Rússia, a Ucrânia e os EUA (que participa ativamente da guerra através da ação da Otan e do fornecimento de armamento moderno para a Ucrânia).
Acontece que os objetivos dos EUA são muito diferentes dos objetivos do Brasil e dos outros países, que se propõem a organizar o Grupo da Paz (como a China, a Índia, a Rússia, o Irã). Os EUA querem se valer da guerra para tentar derrotar a Rússia e, nos seus sonhos, derrubar Putin. O Brasil e o Grupo da Paz lutam pela paz, os EUA e seus aliados europeus acirram a guerra, com cada vez mais armamentos.
Essa é a diferença entre os EUA e a América Latina, entre os países que despejam mais armamentos na Ucrânia (EUA e países europeus) e os que buscam a paz. Os que privilegiam por tentar derrotar a Rússia e os que lutam pela paz. Por isso os EUA são um país imperialista, que costuma invadir outros, que fazem com que quem leve mais vantagens na guerra seja a indústria bélica norte-americana.
Daí que o convite de Biden soa como um apelo cínico, de quem trata de desviar os verdadeiros termos deste conflito e esconder o caráter de potência imperialista dos EUA. Por isso Lula não deu ouvidos ao apelo de Biden. Suas palavras nos EUA soam ainda como as de um verdadeiro estadista, ao lado da dimensão pequena do chefe da maior potência belicista do mundo.
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