Sochi examina a Utopia de um mundo multipolar

A primeira sessão de Sochi avançou muito em termos de explicitar nossas dificuldades atuais, a começar pela forma com que o incandescente conflito Estados Unidos-China vem se desenrolando

18ª reunião de Sochi
18ª reunião de Sochi (Foto: Reprodução)


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Por Pepe Escobar, para o Asia Times

Tradução de Patricia Zimbres, para o 247

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A reunião anual do Clube Valdai sempre se posicionou como absolutamente essencial para a compreensão do incessante movimento das placas tectônicas geopolíticas de toda a Eurásia. 

A atual 18ª reunião de Sochi  mais uma vez faz jus às expectativas. O tema geral foi As Transformações Globais no Século XXI: o Indivíduo, os Valores e o Estado. Nela foi aprofundado o tema do "mundo em desintegração" que Valdai vem analisando desde 2018: como ressaltaram os organizadores, esse tema "deixou de ser uma metáfora, para se transformar em uma realidade palpável frente a nossos olhos".
Norteando as discussões em Sochi, Valdai lançou dois intrigantes relatórios capazes de dar muito o que pensar, em especial para o Sul Global: A Era da Pandemia: Ano Dois. O Futuro Está de Volta e História, Continua no Próximo Episódio: a Utopia de um Mundo Diversificado .

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O conceito de o "Futuro Está de Volta" significa essencialmente que, após o choque da covid-19, a ideia de um futuro linear e unilateral, concomitante a um "progresso" definido como uma democracia globalizada sacralizando o "fim da história", está morto e enterrado. 

A globalização, tal como formulada pelo neoliberalismo, mostrou ser finita. A possibilidade de resvalarmos para o totalitarismo médico e para o aparato de uma penitenciária de segurança máxima são evidentes por si só. Como observaram alguns dos participantes, o conceito de "biopoder" de Foucault deixou de ser filosofia abstrata. 

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A primeira sessão de Sochi avançou muito em termos de explicitar nossas dificuldades atuais, a começar pela forma com que o incandescente conflito Estados Unidos-China vem se desenrolando. 

Thomas Graham, do Conselho de Relações Exteriores - a matriz conceitual do establishment americano – recitou as proverbiais banalidades sobre a "nação indispensável" e como ela está "preparada para defender Taiwan", mesmo tendo admitido que "o governo Biden ainda está articulando sua política".

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Coube a Zhou Bo, do Centro de Segurança e Estratégia Internacional da Universidade Tsinghua, colocar as perguntas difíceis: se os Estados Unidos e a China estão em competição, "a que distância estaríamos de um conflito?" Ele enfatizou a necessidade de "cooperação," para que não se descambe para um confronto, afirmando entretanto que a China "irá cooperar a partir de uma posição de força".

Zhou Bo também deixou claro que a China "não está  interessada na bipolaridade", em termos de substituir a União Soviética da era da Guerra Fria": afinal, "a China não está competindo com os Estados Unidos em nenhum outro lugar do mundo". Mas, como o centro de gravidade vem se deslocando irreversivelmente para o Leste", ele admitiu que a situação atual "é mais perigosa que a da Guerra Fria".  

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Examinando o tabuleiro global, o ex-chanceler brasileiro Celso Amorim enfatizou "o absurdo de o Conselho de Segurança das Nações Unidas ter poder de decisão até mesmo sobre questões relacionadas à pandemia".  Amorim deu voz a uma das principais reivindicações do Sul Global: "a necessidade de uma nova estrutura institucional. A possibilidade mais próxima a isso seria o G-20 - um pouco mais africano, um pouco menos europeu". Esse G-20 seria investido da autoridade que falta ao atual Conselho de Segurança. 

Amorim, portanto, teve que vincular toda a questão à centralidade da desigualdade: seu gracejo sobre "vir de uma região esquecida", a América Latina, foi direto ao ponto. Ele teve também que ressaltar que "nós não queríamos uma Pax Americana". Um passo real e "concreto em direção à multipolaridade seria "uma grande conferência", que poderia ser conduzida por esse "G-20 modificado". 

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Togtbaatar Damdin, membro do Parlamento da Mongólia, ao evocar "meu avô ancestral" Genghis Khan, e como ele construiu aquele "imenso império e o chamou de Pax Mongolica", enfocou o que é importante no aqui e agora: "comércio pacífico e integração econômica na Grande Eurásia".  Damdin enfatizou que, "nós [os mongóis] não acreditamos mais na guerra. É muito mais lucrativo nos engajarmos em comércio". 

Um tema constante dessa e de outras sessões do Clube Valdai foi a Guerra Fria e a Guerra Sombra, os novos instrumentos imperiais empregados contra partes da América Latina, o "Grande Oriente Médio" e a Rússia-China, contrastado a um "sistema transparente, regido pelo estado de direito e defendido pelo direito internacional", como colocado por Oksana Sinyavskaya, do Instituto de Política Social da Alta Escola de Economia.

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As discussões de Sochi enfocaram, essencialmente, o crepúsculo do atual sistema socioeconômico hegemônico - basicamente o neoliberalismo; a crise do sistema de alianças - como na deterioração da OTAN; e a confluência tóxica da Guerra Híbrida e da pandemia - que colocou bilhões de pessoas sob forte tensão. A conclusão inevitável: o atual sistema internacional é disfuncional e incapaz de lidar com o gerenciamento de crises.   

Entra em cena Lavrov, o rock star

Na mesa redonda que apresentou o relatório Valdai sobre o Segundo Ano da Pandemia, Thomas Gomart, um diretor do Instituto Francês de Relações Internacionais (IFRI), ressaltou o quanto ainda é difícil analisar dados geopolíticos. O fato de os chineses estarem privilegiando o conceito de "civilização ecológica" faz com que as questões de monitoramento tecnológico - como, por exemplo, a concepção do crédito social - ocupem agora o primeiro plano.

E, enquanto mergulhamos cada vez mais fundo nas "guerras invisíveis" – na terminologia do próprio Gomart – enfrentamos uma convergência tóxica de degradação ambiental e hiperconcentração das plataformas digitais. 

Gomart insistiu também em dois pontos cruciais que tendem a escapar a muitas análises vindas de todo o Sul Global: Washington decidiu permanecer como o primus inter pares, e não irá abdicar dessa posição aconteça o que acontecer. Isso ocorre ao mesmo tempo em que o Capital Global - com seu viés pesadamente pró-EUA - deseja encontrar a nova China.
Essa colocação preparou a cena para Nelson Wong, o vice-presidente do Centro de Xangai para  Estudos Internacionais e Estratégicos sobre a Orla do Pacífico, diplomaticamente destroçar as táticas de Dividir e Dominar e a obsessão dos Estados Unidos com jogos de soma-zero. Wong insistiu que a China "não tem uma atitude hostil contra os Estados Unidos", e que seu objetivo é uma "ascensão pacífica".

Mas o mais importante é que Wong assegurou que "O mundo pós-pandemia são será determinado pelo resultado do confronto entre Estados Unidos e China, nem pela divisão do mundo em dois campos rivais". Essa perspectiva esperançosa implica que o Sul Global acabará por ganhar voz - alinhado à proposta de Amorim de um G-20 aperfeiçoado.     

O Chanceler russo Sergey Lavrov, como não poderia deixar de ser, brilhou como o grande rock star de Valdai na sessão especial de perguntas e respostas.

É significativo que as discussões de Valdai em Sochi ocorram no momento em que Moscou decidiu suspender os trabalhos de sua missão diplomática na OTAN a partir de 1º de novembro  e fechar o escritório informativo da OTAN em Moscou. Lavrov já havia afirmado que a Rússia desistiu de fingir que mudanças nas relações com a OTAN sejam possíveis em um futuro próximo: de agora em diante, se eles quiserem conversar, devem entrar em contato com o embaixador russo na Bélgica.    

Uma das questões colocadas em Sochi gira em torno de Moscou esperar que a OTAN dê o primeiro passo para melhorar as relações. Lavrov, mais uma vez, teve que repetir o óbvio: "Sim, partimos desse princípio. Jamais tomamos a iniciativa de prejudicar nossas relações com a OTAN, com a União Europeia ou com qualquer outro país ocidental ou de qualquer região do mundo. Todos conhecem bem essa história. Quando Saakashvili, em agosto de 2008, deu a ordem criminosa de bombardear a cidade de Tskhinval e as posições das missões de paz (inclusive russas), a Rússia insistiu em reunir o Conselho Rússia-OTAN para examinar a situação. A então Secretária de Estado dos Estados Unidos Condoleeza Rice recusou-se categoricamente, embora o Ato Fundador do Conselho determine que ele deveria agir em quaisquer "circunstâncias", especialmente em situações de crise. Esse é apenas um dos exemplos que marcaram o início do atual estado de coisas entre os Estados Unidos e a OTAN".

A Rússia, portanto, ditou novas regras para o jogo (atlanticista): só conversamos com quem manda, ignoramos os subalternos. Quanto à OTAN, agora posicionada para criar "capacidades" a serem usadas contra a China, o Sul Global pode se preparar para uma boa sessão coletiva de risadas – tendo em vista a recente humilhação sofrida pela OTAN no Afeganistão. 

Uma vez que um entrelaçamento geoeconômico cada vez maior entre a União Europeia e a China é inevitável, a disfuncional OTAN conseguirá, no máximo, continuar rondando como um bando zumbi de cães danados. Bem, esse seria um bom tema-Utopia para Valdai 2022. 

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