Sobre ser desaparecido

"O arquivo inteiro dos seis anos do meu show On Contact (rt.com) foi desaparecido do YouTube", escreve Chris Hedges

(Foto: Mr. Fish/Reprodução)


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Por Chris Hedges 

(Publicado no site The Chris Hedges Report, traduzido e adaptado por Rubens Turkienicz para o Brasil 247.)

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O arquivo inteiro de On Contact – o show nomeado para o Emmy que eu apresentei durante seis anos para a RT America e a RT Internacional – foi desaparecido do YouTube. Sumida está a entrevista com Nathaniel Philbrick sobre o seu livro sobre George Washington. Sumida está a conversa com Kal Bird sobre a sua biografia de J. Robert Oppenheimer. Sumida está a minha exploração sobre o “Ulysses” de James Joyce, com o Professor Sam Slote do Trinity College de Dublin. Sumido está o show com Benjamin Moser sobre a sua biografia de Susan Sontag. Sumido está o show com Stephen Kinzer sobre o seu livro sobre John Foster Dulles e Allen Dulles. Sumidas estão as entrevistas com os críticos sociais Cornel West, Tariq Ali, Noam Chomsky, Gerald Horne, Wendy Brown, Paul Street, Gabriel Rockwell, Naomi Wolff e Slavoj Zizek. Sumidas estão as entrevistas com os novelistas Russel Banks e Salar Abdoh. Sumida está a entrevista com Kevin Sharp, um ex-juiz federal dos EUA, sobre o caso de Leonard Peltier. Sumidas estão as entrevistas com os economistas David Harvey e Richard Wolff. Sumidas estão as entrevistas com os veteranos de guerra e graduados de West Point Danny Sjursen e Eric Edstrom sobre as guerras dos EUA no Oriente Médio. Sumidas estão as conversas com os jornalistas Glenn Greenwald e Matt Taibbi. Sumidas estão as vozes daqueles que estão sendo perseguidos e marginalizados, incluindo o advogado de direitos humanos Steven Donziger e o prisioneiro político Mumia Abu Jamal. Nenhum dos shows que eu fiz sobre encarcerarão em massa – nos quais eu entrevistei egressos das nossas prisões – estão mais no YouTube. Sumidos estão os shows com os cartunistas Joe Sacco e Swayne Booth. Dissolvidos no ar, sem deixar sequer um vapor atrás.

Eu não fui consultado, nem recebi qualquer aviso do YouTube. Eu desapareci. Nos sistemas totalitários, você existe e depois não existe. Suponho que isto foi feito em nome de censurar a propaganda russa, apesar de que me é difícil ver como uma discussão detalhada sobre “Ulysses” ou as biografias de Susan Sontag e J. Robert Oppenheimer tivessem qualquer conexão com Vladimir Putin aos olhos dos mais obtusos censores de Silicon Valley (Vale do Silício). É fato que não há sequer um show que tratava da Rússia. O show foi ao ar na RT porque – sendo eu um crítico do imperialismo estadunidense, do militarismo, do controle corporativo sobre os dois partidos políticos reinantes nos EUA e, especialmente, porque eu apoio o movimento Boycott, Divestiment and Sanctions (Boicote, Desinvestimento e Sanções) contra Israel – eu entrei na lista negra. Eu estava na RT pela mesma razão que o dissidente Václav Havel – a quem eu conheci – estava na Voz da America durante o regime comunista na Tchecoslováquia. Era isso ou não ser ouvido. Havel não amava mais as políticas de Washington do que eu amava as políticas de Moscou.

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Será que somos uma sociedade melhor e mais informada por causa da censura? Será este um mundo no qual queremos viver, onde aqueles que sabem tudo sobre nós, e sobre quem nós nada sabemos, podem nos apagar instantaneamente? Se isto ocorre comigo, pode ocorrer com você e com qualquer crítico, em qualquer lugar, que desafia a narrativa dominante. E é para lá que estamos indo, à medida que as classes dominantes se recusam a responder à privação de direitos e ao sofrimento da classe trabalhadora, optando (as classes dominantes) não por mudanças sociais e políticas, ou a refrear o poder predatório e a riqueza obscena dos nossos mandantes oligárquicos; ao invés disso, estas impõem controles de ferro sobre a informação, como se isso fosse resolver a crescente inquietação social e as vastas divisões políticas e sociais.  

Os líderes de torcida mais vocais à favor desta censura são as classes liberais. Apavorados pelas multidões iradas dos teóricos da conspiração Qanon, os fascistas cristãos, as milícias armadas e os apoiadores de cultos pró-Trump que surgiram das distorções do sistema eleitoral inundado pelo dinheiro, pelo neoliberalismo, a austeridade, a desindustrialização, o capitalismo predatório e o colapso dos programas sociais, eles suplicam aos monopólios digitais que façam desaparecer tudo isso. Eles culpam a todos, menos eles próprios. Os Democratas no Congresso dos EUA fizeram interrogatórios com os CEOs (presidentes) de empresas de mídias sociais, pressionando-os a fazer maispara censurar conteúdo. Banir os trogloditas. Assim, teremos a coesão social. Assim, a vida voltará ao normal. Notícias falsas (fake news). Modelo de redução de danos. Poluição informativa. Desordem informativa. Eles têm todo tipo de frases Orwellianas para justificar a censura. Neste ínterim, eles vendem a sua própria fantasia de que a Rússia foi responsável pela eleição de Donald Trump. Esta é uma chocante incapacidade de ser remotamente autorreflexivos ou autocríticos, e é uma coisa sinistra como entramos cada vez mais fundo num estado de disfunção política e social.

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Quais foram os meus pecados? Ao contrário dos meus antigos empregadores, o The New York Times, eu não lhes vendi a mentira sobre as armas de destruição em massa no Iraque, nem vendi as teorias de conspiração sobre Donald Trump como agente russo, nem produzi um podcast de dez capítulos chamado O Califato – que era uma farsa -, nem lhes disse que o conteúdo do laptop de Hunter Biden era “desinformação”. Eu não profetizei que Joe Biden seria o próximo F.D. Roosvelt nem que Hillary Clinton ganharia as eleições.

Como I.F. Stone (um famoso jornalista crítico estadunidense) nos lembrou, a censura trata de apoiar aquilo que os governos sempre fazem: mentir. Desafie a mentira oficial, como eu fiz com frequência, e logo você se tornará uma não-pessoa nas mídias digitais. Julian Assange e Edward Snowden expuseram a verdade sobre o funcionamento interno criminoso do poder. Veja onde eles estão agora. Esta censura está a um passo atrás da areografia (apagamento gráfico) de não-pessoas como Leon Trotsky nas fotos oficiais, feita por Joseph Stalin. Esta é a destruição da nossa memória coletiva. Esta censura remove os esforços por examinar a realidade de maneiras que a classe dominante não gosta. A meta é fomentar a amnésia histórica. Se não sabemos o que ocorreu no passado, não conseguimos ver sentido no presente.

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“No momento em que não temos mais uma imprensa livre, qualquer coisa pode acontecer”, alertou Hannah Arendt. “O que torna possível ao totalitarismo ou qualquer outra forma de ditadura reinar é que as pessoas não estejam informadas; como é que você pode ter uma opinião se não estiver informado? Se todos sempre mentem a você, a consequência não é que você acredite nas mentiras, mas que ninguém acredite mais em coisa alguma. Isto deve-se ao fato que as mentiras, pela sua própria natureza, têm que ser mudadas, e que um governo mentiroso tem que reescrever constantemente a sua própria história. Ao final de contas, você não tem somente uma mentira – uma que você poderia ter pelo resto da vida – mas que você tem uma grande quantidade de mentiras, dependendo de como sopra o vento político. E um povo que não consegue mais acreditar em coisa alguma, não pode decidir - fica privado não apenas da sua capacidade de agir, mas também da sua capacidade de pensar e julgar. E você pode então, fazer o que lhe aprouver com tal povo.”

Eu não estou só. O YouTube remove e desmonetiza regularmente canais – como ocorreu com o Progressive Soapbox – sem aviso prévio, geralmente argumentando que o conteúdo destes continham vídeos que violam os padrões da comunidade amorfa do YouTube. O canal Status Coup – que filmou o ataque do Capitólio (Congresso dos EUA) em janeiro passado – foi suspenso pelo YouTube por “promover as falsas alegações sobre uma fraude eleitoral”. O conteúdo dos meus vídeos, diga-se de passagem, consistia basicamente de capas de livros, citações de trechos de livros e fotos de autores – mas foi desaparecido, de qualquer jeito.

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A desplataformização de vozes como a minha – já bloqueada pelas mídias comerciais e marginalizada por algoritmos – vem acompanhada pela campanha perniciosa para conduzir as pessoas de volta aos braços das mídias institucionais como a CNN, o The New York Times e o Washington Post. Como Dorothy Parker disse outrora sobre a variação emocional de Katherine Hepburn como atriz, qualquer discussão política vai de A a B. Pise fora destas linhas e você é um pária. É por esta razão que Matt Taibbi, Glen Greenwald e eu estamos no website substack.com/  

A guerra na Ucrânia – a qual eu denunciei logo no início como “uma guerra criminosa de agressão” na minha coluna “A guerra é o mal maior” (https://www.brasil247.com/blog/a-guerra-e-o-mal-maior) no ScheerPost e no Brasil247 - é um exemplo autêntico. Qualquer esforço para colocá-la num contexto histórico, para sugerir que a traição dos acordos entre o Ocidente e Moscou – os quais eu cobri como repórter na Europa Oriental durante o colapso da União Soviética – combinada com a expansão da OTAN, pode ter seduzido a Rússia ao conflito, é descartado. Nuance. Complexidade. Contexto histórico. Autocrítica. Tudo é descartado.

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Dedicado a autores e seus livros, o meu show deveria – se tivéssemos um sistema público de radiodifusão funcionante – estar na PBS (Public Broadcasting System – Sistema Público de Radiodifusão dos EUA) ou na NPR (National Public Radio – Radio Nacional Pública dos EUA). Porém a radiodifusão pública (estatal) é tão cativa das corporações e dos ricos quanto as mídias comerciais; de fato, a PBS e a NPR apresentam comerciais sob a forma de reconhecimento de patrocínios. O último show que examinou o poder na radiodifusão foi o de Moyers & Company. Depois que Bill Moyers saiu do ar, em 2015, ninguém tomou o seu lugar.

Há algumas décadas, você ouvia vozes independentes na radiodifusão pública – incluindo Martin Luther King, Malcolm X, Howard Zinn, Ralph Nader, Angela Davis, James Baldwin e Noam Chomsky. Não mais. Algumas décadas atrás, havia uma variedade de revistas semanais alternativas. Há algumas décadas, ainda tínhamos uma imprensa que – mesmo imperfeita – não havia tornado invisíveis segmentos inteiros da população, especialmente os pobres e os críticos sociais. Talvez seja notável que o nosso maior jornalista investigativo, Sy Hersh (https://en.wikipedia.org/wiki/Seymour_Hersh) – que expôs o massacre de 500 civis vietnamitas desarmados pelos soldados dos EUA em My Lai e a tortura em Abu Ghraib – tenha problemas para publicar nos Estados Unidos [*]. Eu indicaria a entrevista que fiz com Sy sobre o estado decadente das mídias estadunidenses, mas esta não existe mais no YouTube.

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[* - nota do tradutor: conseguimos encontrar, ainda online, uma preciosa entrevista de Sy Hersh ao jornalista Afshin Rattansi no RT.com: https://www.rt.com/shows/going-underground/431346-journalist-nato-massacre-skepticism/(vídeo, 28+min)]

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