Sobre o turismo autorizado de baderna e o policiamento consentido de figuração do 8 de janeiro de 2023
O gigante da ingovernabilidade das organizações de força nunca adormeceu
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Por Jacqueline Muniz (professora do DSP/IAC/UFF) e Herbert Bachett (doutorando do PPGSOL/UnB)
3 de março de 2023. Estamos a 53 dias da invasão e devassa às sedes dos três poderes em Brasília postas em prática por uma multidão de autodenominados “patriotas”, saídos de vários cantos do país. 8 de janeiro de 2023. Assistiu-se, das telinhas do smartphones e telonas das TV, a transmissão, ao vivo e nas cores verde-amarela, do maior reality show de um vandalismo coreografado sob a orquestração longa e pública feita a várias mãos. Visualidades e sonoridades de horrores em 5G e 4K: filhinha, sobrinho, mamãe, papai, titia, vovô, coleguinha, consorte, enfim, todos atrás de likes: “olha, eu estou aqui!” fazendo algo muito auto importante. Entre violências e violações diariamente praticadas na internet e nas bases de convivência e doutrinação junto aos QGs, ficou combinado o dia D da destruição: de uma só vez, mas não de uma vez por todas, dar uma lição no Executivo, no Legislativo e no Judiciário. Esculpiu-se ali o segredo público mais bem guardado. Só os “órgãos de inteligência” que “ouviram falar” não receberam o convite para a “festa da Selma” que viralizou nos “zaps” e Telegram.
Os patriotas de Brancaleone colocaram em operação um combo provocativo contra as autoridades constituídas. Promoveram uma manifestação de lacração, um justiçamento de auditório e um atentado de terror contra os símbolos republicanos e democráticos, estimulados por mentores intelectuais que, muito antes, já profanavam Deus acima de tudo e leiloavam o Brasil acima de todos. Tudo com direito a selfies para autopromoção de vândalos convertidos em celebridades instantâneas nos gestos de fúria heroica, solene e lúdica: “isso tudo aí é meu eu faço o que eu quiser”. Viu-se uma horda eufórica composta de um casting de guias profissionais e animadores contratados, figurantes fantasiados de “cidadão de bem”, zumbis de excursões, caroneiros de aventuras e oportunistas da vez. Tudo com o necessário financiamento privado e o indispensável patrocínio de atores públicos: “chega, pode entrar que a casa é sua”.
Marionetes da devassa, pareciam lembrar de esquecer que na internet o print é eterno e que, tão logo o êxtase do momento passasse, restariam as provas autoproduzidas para o grande final da responsabilização legal pela ópera política farsesca em três atos, nos três poderes. Cada palavra de ordem antidemocrática, cada espaço ou objeto vandalizado, cada roubo feito de troféu da barbárie consentida correspondeu a um post de orgulho, ostentação, curiosidade, devoção, ódio e diversão. Tudo em tempo real. Sorriam, nós estamos sendo filmados por nós mesmos! “Tamos Juntos” na inscrição em uma identidade afetiva-político-moral feita de arrebatamentos pelos ressentimentos, frustrações, abandonos, indiferenças e destituições vividos como pânicos morais associados, sobretudo, à ruptura das hegemonias branca, masculina e heteronormativa.
E, assim, cada um levou o que tinha para a marcha missionária antidemocrática. O seu farnel continha as autorrepresentações de “deus, pátria, família e liberdade” particularizadas em suas razões desiguais de classe, cor, gênero, orientação sexual, inscrição religiosa, origem social etc. Os milhares de libertários das regras do jogo constitucional, despossados de bens culturais e/ou despossuídos de bens materiais, se mostravam unidos pelo combate à infinitude de inimigos imaginários criados conforme seu rendimento político. Lá estavam ressuscitados pelo pertencimento ofertado pela indignação raivosa contra o Estado de Direito tomado como invasivo à “liberdade de expressão” pessoalizada e, principalmente, contra um governo “esquerdista” visto como conivente com o “politicamente correto” e condescendente com a propalada corrupção moral das supostas “tradições da sociedade brasileira conservadora e cristã”. Instrumentalidades mobilizadas pela Santíssima Trindade bolsonariana que, em seu projeto autoritário de poder, funde o senhor da guerra (libertador de hoje e tirano de amanhã), o mercador da proteção (cambista dos direitos sociais e agiota da promessa de lei e ordem) e o profeta do caos (pregador da fé cega com facas amoladas que conduz e radicaliza o seu rebanho ao sacrifício da autoimolação e à cruzada da cura ou destituição das ovelhas negras e desgarradas).
Viu-se o sentido do interesse comum da comunidade política aberta à pluralidade de sujeitos pervertido em interesse unitário de uma comunidade moral homogênea autorreferida. Esta se assenta sobre uma simulação de maioria uniforme, cujos efeitos são expandidos pelas manifestações da turba patriótica em prontidão, utilitária e violenta, que mascaram o culto a um Estado Ínfimo em direitos e a um Governo Máximo em coerção, voltados para os interesses individuais egoístas e seus privilégios. Esta Santíssima Trindade bolsonariana se apresentou como uma síntese salvacionista da corrosão do verbo da política – difamada como uma torre de babel –, pela conversão a uma única expressão de autoridade possível, a autoridade autoritária, “imbrochável” em seus propósitos. Dela emanaria a verdade original e autêntica acima da letra das leis e das línguas dos políticos, ao lado do mercado, a prometida terra sem males, e abaixo somente de Deus que teria nesta “autoridade autêntica”, direta e intima, o seu tradutor-intérprete juramentado.
É esta autoridade autoritária que fantasia e vende um mundo purista, sem mediações e acordos, ou melhor, sem a política e com soluções imediatas saídas das taras e manias do mito soberano: o guerreiro negociante e visionário que, em sua saga, despreza as evidências em favor de um prescritivo dever ser. É assim que, a seu serviço, não só extorque a “verdade dos fatos” como também inventa os fatos que servem a esta verdade torturada. Rumores, lendas urbanas, mentiras, vazamentos, testemunhos, delações, arrependimentos, autocríticas e feedbacks serviram como variações táticas da produção de auto verdades da nossa velha conhecida lógica jurídica-inquisitorial que desqualifica e subordina o real à sua interpretação monopolista. Entre nós, a razão segue tendo dono, sendo um atributo instituinte do lugar autoritário do argumento de autoridade.
“Chutar o pau da barraca” contra os não-pode das normas sociais e estatais, testar os limites, a todo tempo, esticando a corda das “quatro linhas da constituição” foi a experimentação do transe libertista, bem ao gosto da doutrina neoliberal que se deleita com a nossa herança escravagista e desigual. Isto foi disseminado como uma justa contrapartida pela fidelização de convertidos a uma liberdade premiada para o alto e uma igualdade sancionada para baixo na estratificação social. Aqui, cada indivíduo convencido teria “feito por merecer”, uma vez alforriado do cativeiro do “mimimi dos pobres por preguiça” e do coitadismo dos “identitários por privilégios”. Demorou, mas chegou a sua vez! Sinta-se por cima da carne seca, incluso no “cercadinho do (seu) presidente-mito” que, junto a você, desacreditava o “sistema”, desconfiava das intenções do Estado e falava mal do próprio governo, fabricando monopólios discursivos e crises sucessivas que sabotavam a previsibilidade da vida nacional, enquanto se esculpia um estado latente de confrontação de nós contra nós mesmos.
De crise em crise tratou-se de promover e agravar a percepção coletiva de insegurança, o lugar síntese das desconfianças sociais, e, com isso, normalizar um regime do medo e suas práticas de exceção. O mito comigo-pode-tudo transformou em pandemônio interativo tanto o cotidiano da política dos poderes constituídos, quanto a política do cotidiano dos cidadãos pobres mortais. Era para ser assim, pois seguia dando certo fazer crer que o que se chamava erroneamente de “pauta de costumes” seria apenas uma superficial “cortina de fumaça” para distrair os vigilantes da democracia das questões centrais, quando se tratava ela mesma da questão-chave. Qual? A disputa pelo verbo, pela palavra, pelos valores e crenças que emprestam sentido e existência concreta às nossas vidas. A questão era teatralizar a bizarrice de uma “terceira via”, à direita e, por vezes, à esquerda, ali nas bolhas virtuais e materiais e, com isso, evocar “a morte da política” como a melhor política para o atual contexto brasileiro. No lugar de um político que faz política, negociando com quem você não pega nem elevador juntos, mostrava-se superior moralmente escolher um suposto semelhante, alguém que soasse parecido e que se colocasse deliberadamente contra outras moralidades distintas e mais inclusivas. Sabemos que toda semelhança deforma o que é específico e o que é comum, já que se trata da imposição intolerante e violenta de uma visão parcial de mundo sobre outras realidades em busca de uma hegemonia sem oposição ou divergência. Assim, vimos ressuscitar um neo-lacerdismo que catequiza o eleitor a buscar, em seu perverso insulamento de cor, classe, gênero etc. e frente ao desmonte das políticas públicas, um político que preencha fantasiosamente os lugares afetivos dos pais, amigos, amantes e apoiadores.
A dramatização do vale-tudo ou das espertezas do golpismo contra o próximo diferente de ocasião havia, portanto, chegado bem antes nas festas, mesas de jantar, na família, nas amizades, nos bares, no trabalho. E lá ficou na esteira da reeleição e destituição misógina da mulher-presidenta, com fachada de legalidade, e da longa e estratégica campanha de ódio a um partido político. Isto, na verdade, correspondeu à construção midiática de uma repulsa coletiva às formas institucionais de representação política e serviu para legitimar os ataques as institucionalidades que conformam a estrutura do Estado e que se seguiram na sanha bolsonarista com o reavivamento do personalismo místico. Porque “a culpa é do PT” abriram-se avenidas de explícita clientelização dos recursos públicos e de desmanche de dispositivos de garantias de direitos, de regulação e fiscalização e de controle público das ações de governo.
Abriram-se avenidas de acuamento das diferenças pelo libertar das expressões integralistas e higienistas, justificadas como marca de renascença de uma “verdadeira” direita nacionalista engajada na luta honorífica contra as ditaduras gayzista, comunista e do STF, onde cada patriota poderia ter o seu inimigo moral de estimação: o LGBTQIA+, o negro, a mulher, o favelado, o quilombola, o indígena, o servidor público, conforme a predileção discriminatória. A questão era, com performances exemplaristas ao alcance das mãos armadas pelo governo bolsonarista e ali nas esquinas, devolver para o armário, para o tronco, para a cozinha ou para o caixão os ameaçadores morais da ordem unida por este, uniforme e autoritária.
E daí? O negócio era mesmo o casamento por interesses entre a nossa tradição colonial hierárquica com a aparente modernidade neoliberal. O negócio era mais uma repaginação da “Oração aos Moços” de Ruy Barbosa, onde já se preconizava uma exclusão declarada e afirmativa “tratando os desiguais desigualmente”: quanto menos gente com ingresso de cidadania na mão, menor a fila dos direitos, maior a tutela coercitiva e o tamanho do bolo meritocrático dividido entre os autoproclamados vencedores. E daí? O negócio era explorar ainda mais a seletividade discriminatória das cercas sociais, das polícias até o mercado, por meio da linguagem moral moderninha do capacitismo e do empreendedorismo de sujeitos mesmificados como criaturas avulsas e solitárias sem marcadores socioidentitários. É assim que se faz para comprometer a coesão, a empatia, o reconhecimento, a solidariedade, a cooperação que dão a liga nas relações sociais e possibilitam que indivíduos, em sua diversidade, exerçam sua individualidade e administrem de forma equânime e pacífica os seus conflitos de valores e interesses.
Com o dia a dia infectado pela tolerância com a intolerância ou com o passar de um boi em cada mundinho e o passar da boiada pela máquina pública, cada um dos sucessivos ensaios gerais que serviram como reestreias e tutoriais do cada vez pior – fechamentos de rodovias, acampamentos para recreações perversas com performances ilegais e fascistas, invasão de sede polícia etc. –, formataram a versão Gold Plus no 8 de janeiro. Este espetáculo predatório foi parte de um escalar de espasmos golpistas e soluços operacionais das forças da ordem, e que se articulou a um “turismo organizado de baderna” animado por atos de terror com card. Constatou-se, com divulgação em flyers, a balada da infâmia (com data e hora marcadas) e um “policiamento inaugural de figuração”. Tudo sob camadas de consentimento - “vamos deixar rolar só mais um pouquinho” -, para que a invasão e a desocupação do Palácio do Planalto, do Congresso e do STF ficassem bem nas fotos e nos vídeos transformados em peças político-publicitárias conforme o gosto do freguês político-partidário. Inúmeros produtos foram produzidos sob demanda como o embaralhar das atribuições dos diversos órgãos da segurança pública e justiça criminal na gestão da ordem pública antes, durante e depois dos circos de horrores desde a eleição; a desconexão suspeitosa entre os vários níveis político, administrativo e policial do decidir e agir, a ocultação dos fluxos temporais de gestão de território e população.
Mas ainda há lacunas para a compreensão do 8 de janeiro. Enquanto os otimistas veem a democracia fortalecida, os pessimistas apontam um preambulo do acirramento do extremismo de direita com as armas bolsonaristas. Ora o “tocar fogo no parquinho” foi superestimado como scripts mirabolantes e altamente sofisticados que consolidariam, enfim, o Golpe de Estado. Ora foi subestimado como rabiscos primários e voluntaristas feitos em guardanapos ou em mensagens de WhatsApp que serviriam só como isca política para a fabricação de ondas de desestabilização.
Nota-se uma pouca atenção ao fato de que os atos de vandalismo e, tão relevante quanto, as camadas de tolerância ou omissão que os possibilitaram foram, também, consequência de um fenômeno anterior ao bolsonarismo e sua influência sobre as polícias e as forças armadas. A performance predatória em escala só foi possível graças aos processos crônicos e intencionais de ingovernabilidade dos meios de força, isto é, de seu aparelhamento político-partidário, de sua apropriação particularista por lógicas corporativistas e de sua mercadização por grupos de interesse.
A ingovernabilidade das organizações armadas não se reduz ao que se convencionou chamar de “politização das polícias” pelo bolsonarismo. Esta é uma abordagem interessante, mas limitada à superfície do problema, já que enviesa a compreensão, atribuindo, invariavelmente, um valor negativo à natureza política do trabalho policial nas democracias. Cabe registrar que a polícia é, por definição, a política em armas em sociedades livres e plurais. Por isso, espera-se que seja continuamente blindada dos interesses partidários, particulares e do mercado, isto é, que se mantenha independente dos grupos de poder, porém compulsoriamente subordinada às políticas públicas dos governos legitimamente eleitos. Por isso, o que se chama de despolitização da polícia, tende a estimular efeitos inversos indesejados: a constituição da polícia como uma autarquia sem tutela ou um partido político disfarçado pela narrativa da autonomia técnico-operacional e da neutralidade obtida pela inamovibilidade de funções que, de fato, encastelam dirigentes nas posições de mando e tornam suas decisões indevassáveis, corporativistas e emancipadas das demandas sociais e das exigências das políticas públicas de segurança. E isto a despeito de qual é o governo eleito e de qual é a política pública aprovada nas urnas.
A despolitização, ocultando que a práxis policial segue política, já que administra vontades em oposição e interesses em conflito no tempo dos eventos sob intervenção, encurtaria etapas na dinâmica de autonomização predatória das espadas comedidas, na sua cristalização como governos autônomos, cujo efeito mais popular entre nós é a sua milicialização. Esta se traduz em uma variante dos domínios armados que contam com a participação decisiva de agentes da lei, e que controlam territórios e populações e regulam os mercados ilícitos sob a conveniência conivente de autoridades públicas. Os domínios armados milicianos, no exercício de sua governança político-criminal, têm inteligentemente usado trajetórias eleitorais desinteressadas da reforma das polícias, como uma lavanderia rentável do dinheiro do crime, contribuindo para o Caixa 2 de campanha que é de difícil rastreamento pela ilegalidade de todo o processo e das fontes de recursos.
O grave problema da ingovernabilidade dos meios de força e as ameaças (in)visíveis que sabota a sustentação, a previsibilidade e transparência no exercício do poder em democracias, tem sido demonstrado pela história das reformas das polícias nas democracias ocidentais desde o século XIX. O que inclui algumas poucas tentativas brasileiras, especialmente na década de 2000. Estas ousaram produzir governança de polícia e controle da ação policial, ultrapassando o enxuga gelo expresso na cantilena corporativista do “cobertor curto” que demanda, sem contrapartida, “mais salário, efetivo, viatura, armamento e munição” diante das incapacidades e omissões fabricadas como forma de chantagem política. Não é à toa que, diferente da baixa visibilidade social e do limbo normativo-procedimental das capacidades coercitivas e dos seus modos de emprego no Brasil, as polícias em países democráticos fundamentam sua doutrina do uso potencial e concreto de força através de protocolos públicos e publicizados, pactuados com a sociedade policiada, detentora do poder coercitivo administrado em seu nome pelo Estado. Afinal, se a base da democracia é a cidadania, não pode ser a espada que define ela mesma a profundidade, intensidade e extensão do seu corte acima da autorização dos cidadãos-eleitores. Isto sob pena do estado de direito se tornar, na prática, o direito do Estado Policial, um governo autônomo que intimida o executivo, acossa o parlamento, ameaça o judiciário e silencia a sociedade, como repetidas vezes temos visto por aqui e que experimentou um dos seus momentos épicos no 8 de janeiro.
Lembremos que a polícia moderna foi, e ainda é, “a cereja do bolo” dos projetos democráticos. Ela foi reinventada para substituir os dispositivos particulares e seletivos de proteção, que se assentam sobre disseminação contínua de ameaças, pelo provimento regular e universal de segurança pública, uma das grandes novidades do regime democrático. A polícia pública moderna foi a resposta política para retirar exércitos, mercenários, grupos de autodefesa e ligas comunitárias das ruas e buscar sepultar os modos desiguais, discriminatórios e excludentes de produção de sujeição em favor da negociação da obediência, sob consentimento cidadão, às regras pactuadas da vida em uma sociedade igualitária, livre e plural.
Mas, no Brasil, ainda vivemos perigosamente improvisando com os meios que cortam, ferem e matam: os meios de força que se insubordinam dos fins da política pública de segurança e defesa para empregar seus modos de ação a serviço das mãos que alisam as maçanetas dos gabinetes e carregam as maletas das autoridades e, claro, do rodízio das pás politiqueiras que mantém as panelas corporativas aquecidas. Como resultado dos lobbies dos partidos das forças, a “constituição cidadã”, mudou os artigos 142 e 144 para manter igual aos tempos autoritários. Preservou-se monopólios e quase-monopólios dos policiamentos e manteve-se os mandatos policiais como uma procuração em aberto a seguir preenchida no fio do bigode dentro das antessalas dos governos e das salas dos comandos.
Desta forma, não se delimitou as competências federativas exclusivas e partilhadas entre as forças, das forças armadas à guarda municipal, favorecendo as “omissões”, as carteiradas e as desautorizações nas ruas, entre as forças e destas com seus comandantes-em-chefe. A decisão política concertada foi a de não por a mão no vespeiro da segurança e da defesa, pois se mostrava útil explorar o lusco-fusco do cheque em branco no exercício do poder coercitivo para se usar contra o oponente político e/ou um grupo social visto como insurreto. “Polícia para quem precisa de polícia”: “o meu rival político” ou o “meu inimigo social”. Erigiu-se ali instituições de força fracas e subservientes com players fortes e autonomizados, autorizados a inverter a cadeia de comando e controle, sob o álibi da “grave perturbação da ordem pública”, da “crise da segurança”, da “proteção das instituições da república” e da “ameaça à democracia”.
Desde a tal da redemocratização colocaram as Forças Armadas para fazerem bico na segurança por meio das operações de GLO (garantia da lei e da ordem) em qualquer situação que se servisse para trocar mercadorias políticas entre os governantes. Foram 145 GLO de 1992 a 2021 para trocar band-aid no policiamento com gastos de cirurgia. As forças armadas não saíram das ruas e nelas permaneceram “fazendo UBER” na gestão da ordem pública sob o lastro das conveniências políticas e com o desconforto de se subordinarem, na prática, à expertise das polícias militares, ainda definidas inadequadamente como “forças auxiliares e reserva” do exército. Assiste-se, até hoje, à gambiarra tático-operacional do militar policial fazendo a guerra e a gambiarra operacional-tática do militar combatente fazendo policiamento.
Os experimentos mais bem acabados das FA como governo autônomo foram durante os 18 meses de ocupação do Complexo do Alemão (nov./2010 a jun./2012), ao custo de 25 milhões/mês e nos 11 meses de intervenção federal (militar) em 2018. Ambas no Rio de Janeiro, por obvio, o palco de retumbância internacional e palanque estratégico para subir a rampa do planalto. Por um lado, o Rio é o principal celeiro de inciativas inovadoras da sociedade civil na segurança pública. E por outro, é o grande laboratório do Estado para o recorrente “chama as FA”, a terra do Comando Militar do Leste, onde se pode em questão de horas fazer o espetáculo de “por o exército nas ruas” e das milícias que hoje renegociam um novo tratado de Tordesilhas dos governos criminais. E, não menos importante, o Rio é um cartão postal do funcionamento da máquina pública como uma espécie de agência reguladora do crime organizado.
Mas o desgoverno das forças para atender às clientelas de dentro, de cima, de baixo e ao redor conta com a extensão e vagueza do “poder de polícia” que, definido no código tributário de 1966, durante a ditadura, é, sob a inspiração francesa oitocentista da “sûreté, sécurité et salubrité, um pode-tudo desregulamentado contra a cidadania. Não para é saber onde começa e termina o poder de polícia desregrado, com baixa institucionalidade e cujo emprego está ao alcance de qualquer servidor público com função reguladora ou fiscalizatória. Aqui tem-se um poço sem fundo para o exercício discricionário da coerção, o que esconde os fundamentos e limites do uso da força pelos agentes, o agir e o não agir policial e, com isto, sua responsabilização política, administrativa e operacional. Para que mesmo colocar luz do sol da accountability civil sobre os porões decisórios das organizações armadas, se elas têm sido disciplinadas e obedientes aos seus distintos patrões? Sob a névoa legal-procedimental do poder de polícia transformam-se batalhões em capitanias hereditárias e delegacias em Vaticanos dentro de Roma, os quais possibilitam o laissez-passer da ingovernabilidade policial que fabrica os forjados legais para o recente modismo do lawfare que vitimou e encarcerou, pouco tempo atrás, o atual presidente da república Lula da Silva.
Após o 8 de janeiro, não se pode mais dar sobrevida ao descontrole, a desregulação e a desregulamentação que permitem a apropriação das polícias para a capangagem midiático-eleitoreira e a expropriação do direito à segurança como forma de lucro eleitoral ou financeiro.
Apropriar-se dos meios de força é ter nas mãos um coringa político, capaz de produzir mercadorias valiosas como se viu no lavajatismo: invenção de criminosos, investigações suspeitas, buscas e apreensões duvidosas, prisões publicitárias, operações cinematográficas, carreirismo político etc. É poder transformar governantes em ventríloquos do “tiro, porrada e bomba” e garotos propagandas da guerra contra o crime, o que esvai toda a tinta da sua caneta. É poder rifar governantes que, uma vez perdido a capacidade de mando sobre as estruturas e agentes das forças, se tornam dependentes de intermediários corporativistas. Estes, não raro, apostam no quanto pior melhor para barganhar e subir a fatura política diante da crise posta em execução, obrigando os governantes a vender o almoço para garantir a janta da governabilidade. E isto com a oportunidade sempre aberta de uma greve que os obriguem a colocar as espadas sentando-se em sua cadeira ou acima de suas cabeças proclamando mais privilégios e anistia. Viu-se as quedas de braço entre governo e agentes armados nos motins no Espírito Santo, em 2017, e no Ceará, em 2020. Estes contaram com aduladores de onça de dentro do governo e animadores de auditório bolsonaristas que estimulavam a quebra da cadeia de comando e controle. Conviver com a ingovernabilidade é governar com sobressaltos com um sério agravante a mais: a sujeição das populações periféricas aos protocolos informais do uso da discricionariedade policial ilimitada que elimina cidadãos e adoece os policiais vocacionados que vão sendo convertidos em zumbis do patrulhamento, silenciados pela perseguição ideológica e pela “judiação” corporativa.
Sem esgotar aqui o que a ingovernabilidade dos meios de força tem produzido no Brasil, cabe renovar alguns aprendizados sobre os processos de estabilização do poder nas democracias e que estão diretamente relacionados ao controle civil das organizações armadas. É sabido que se o vigia se torna muito forte ele ameaça golpear o governante para sentar-se em sua cadeira e governar em seu lugar. É sabido que se o vigia se torna muito fraco ele sabota o governo do governante, associando-se a grupos de poder que lhe ofereçam vantagens em troca do acesso privilegiado à máquina estatal. É sabido, portanto, que as espadas, primeiramente leais a si mesmas, quando emancipadas dos controles da sociedade e de seu governo ficam à vontade para cortarem a língua do verbo da política – à direita ou à esquerda -, e rasgarem a letra da lei. Uma e outra situação algemam o governante em seu gabinete, tornando-o um apagador de incêndios artificiais e refém das más notícias sempre passíveis de serem intencionalmente produzidas na segurança pública e na defesa. O que vai consumindo seu capital eleitoral, sua credibilidade política e a confiança pública.
É este tipo de ameaça latente construída de longa data entre nós que tem servido como causa e efeito para a fantasia de um poder moderador das espadas que não está na lei, mas está no mundo da política acionado como uma moeda de troca, uma advertência para se seguir com a ingovernabilidade e a barganha corporativa de elevada rentabilidade. Quer se fazer crer que a democracia brasileira, sempre a beira de um ataque de nervos e, curiosamente, em eterna transição “lenta, gradual e segura”, necessitaria de um fiel da balança nobiliárquico, um substituto do imperador: um certo pessoal das espadas que sem mandato constitucional claro diz “não gostar de político, porém “adora fazer política com a farda. Tudo se passa como se a democracia brasileira, quatro décadas depois da abertura, fosse um playground de condomínio com um síndico sistemático, um agente da lei aposentado -, que decide como brincar de sujeito de direito e quando desligar os brinquedos da cidadania. Tudo se passa como se a democracia brasileira tivesse que pedir licença e se provar apropriada às espadas em desgoverno que fabulam uma tutela sob uma cidadania transformada em brinde de gincana.
Se o problema é político a solução é também política. E está ao alcance das mãos. A construção da governabilidade dos meios de força combatentes e comedidos é processual e não depende necessariamente de mudança constitucional, ainda que esta seja pertinente nos médio e longo prazos. Parte expressiva das ferramentas de produção de controle, accountability e responsabilização são de natureza administrativa-procedimental e de curto e médio prazos. Portanto, estes recursos estão sobre a mesa dos comandantes em chefe das forças (presidente e governadores) e seus subordinados (ministros e secretários) e pode começar amanhã. O custo/benefício maior da produção de governança sobre as espadas não é orçamentário e sim político saído da legitimidade das urnas.
Governar às espadas é preciso porque vigiar não é preciso. Há que virar a página dos temores que dão sobrevida aos chupa-cabra e aves de mau agouro que acedem vela para o golpismo porque lucram com as miragens de golpe a toda hora e em qualquer lugar. É preciso ir além do voluntarismo caricaturado pela incorporação de um “espírito republicano” e do personalismo manifesto na presença volátil de “vontade política” que dá e passa conforme os humores do mandatário. Mais uma janela de oportunidade se abriu para a reforma da segurança pública e dos meios de força. Enfim, que ela seja um lindo sambódromo por onde desfilam os direitos, uma grande passarela de esperança de previsibilidade com abundância de futuro estável e inclusivo.
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