Sobre o totalitarismo invertido
Um sistema de poder de Estado é totalitário quando passa a ser exercido de modo centralizado por meio de um movimento político unitarista que comanda a vida pública e privada como um todo
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Este artigo se vale de uma matéria do jornalista norte-americano Chris Hedges, publicada no portal Truthdig[i], para apresentar – e para aproveitar criticamente – uma tese muito interessante do cientista político, também norte-americano, Sheldon Wolin. Em seu livro Democracia incorporada: democracia administrada e o espectro do totalitarismo invertido[ii], este último autor sustenta que o sistema político dos EUA se encontra completamente dominado pelo poder das grandes corporações e que, por isso, não é de fato democrático – mas, ao contrário, totalitário.
Wolin, antigo professor da Universidade da Califórnia, em Berkeley, é apresentado no artigo acima referido como um democrata radical que desenvolveu uma compreensão original do sistema político norte-americano. O seu modo de apreendê-lo se afastou intencionalmente tanto daquele proporcionado pelo liberalismo convencional quanto daquele apresentado pelo marxismo tradicional, as quais figuram como dominantes no pensamento de esquerda subsistente no meio acadêmico daquele país.
Ora, diante dessa posição apenas enunciada até agora em seus contornos gerais, uma pergunta se impõe de imediato: por que chamar esse sistema de totalitário invertido? Eis a resposta apresentada por Hedges com a intenção de ir diretamente ao ponto: “Nos regimes totalitários clássicos, tais como aqueles do fascismo nazista ou do comunismo soviético, a economia se encontrava subordinada à política. Mas, “sob o totalitarismo invertido” – escreve Wolin – “o reverso é verdadeiro: a economia domina a política – e sob essa dominação surgem diferentes formas de maldade”. Assim, ele continua: “os Estados Unidos se tornaram o mostruário do modo como a democracia é administrada pelos interesses das empresas sem parecer que foi suprimida”.
Aqui se pretende examinar a tese de que a “economia se encontrava subordinada à política” nos regimes totalitários reconhecidos como tais (stalinismo, fascismo, nazismo). Pretende-se mostrar que essa percepção é apenas aparentemente verdadeira. E que esse autor a toma com imediatamente válida porque se julga aqui que ele tem uma compreensão inadequada da relação entre a esfera econômica da sociedade moderna e a esfera da política.
Acolhe-se, no entanto, como correta a tese de que se pode falar em “totalitarismo” para se referir ao regime político nos Estados Unidos. Eis que essa noção – considera-se – contribui para bem caracterizar o que ocorre nesse país, mas não apenas nele; eis que se aplica também a outros países que gravitam em sua órbita de influência. Aqui, porém, vai se tomar essa existência como algo em potência – uma potência que está sempre em via de se tornar ato – e não como realidade imediata, sempre presente.
Há, sim, uma forte negação da democracia nesses países, mesmo se isto não é percebido como tal pelas pessoas comuns que estão enredadas – e alienadas – nas formas políticas vigentes. O que, então, esconde-se sob a aparência democrática do regime político aí vigorante? O que justificaria o emprego do substantivo “totalitário” para denominá-lo? Justifica-se o uso do adjetivo “invertido” para caracterizá-lo? Eis que, para responder a essas perguntas, é preciso dar algum corpo à tese central desse cientista político que, mesmo para um observador pouco atento, deveria parecer bem significativa.
A tese de Sheldon Wolin
Segundo Hedges, está-se diante de uma forma diferente de totalitarismo, o qual se distingue daquele que chama de clássico: “Essa forma não se mostra por meio de um líder carismático e demagogo, mas por meio do anonimato sem rosto do estado corporativo. O totalitarismo invertido mantém fidelidade exterior à política eleitoral de faixada, à Constituição, às liberdades civis, à liberdade de imprensa, à independência do judiciário, assim como à iconografia, tradições e linguagem do patriotismo americano, porém, efetivamente, tomou já todos os mecanismos de poder que visam tornar o cidadão impotente”.
Para ilustrar o seu resumo sintético da tese fundamental de Sheldon Wolin, Chris Hedges reproduz em seu artigo o seguinte trecho do livro do primeiro: “Ao contrário dos nazistas que tornaram a vida difícil para os ricos e para os privilegiados, ao mesmo tempo em que proporcionavam programas sociais para a classe trabalhadora e para os pobres, o totalitarismo invertido explora os pobres, reduzindo ou enfraquecendo os programas de saúde e os serviços sociais, fomentando uma educação de massa para uma mão-de-obra insegura, constantemente ameaçada pela importação de trabalhadores com baixos salários. (…) O emprego em uma economia de alta tecnologia, volátil e globalizada, é normalmente tão precário quanto durante uma depressão do velho tipo. O resultado é que a cidadania, ou o que resta dela, é praticada em meio a um estado de preocupação contínuo. Hobbes tinha razão: quando os cidadãos estão inseguros e se encontram, ao mesmo tempo, impulsionados por aspirações competitivas, eles anseiam por estabilidade política ao invés de engajamento cívico, querem proteção e não envolvimento político”.
Nessa percepção, o que de fato existe nesses países ditos democráticos é uma “ditadura” disfarçada ou uma “ditadura sob medida”. Eis que “o sistema do totalitarismo invertido evitará sempre as medidas duras e violentas de controle (…) desde que os dissidentes permaneçam impotentes. O governo não precisa acabar com eles. A uniformidade imposta à opinião pública por meio da mídia corporativa faz este serviço – de uma forma disfarçada e, por isso, bem mais eficiente”. “Ao invés de participar do poder” – diz Wolin – “o cidadão virtual é convidado a ter ‘opiniões’, a dar respostas mensuráveis para questões previamente designadas para eles”.
Há eleições periódicas nesses países, mas o que elas significam em termos da constituição de uma verdadeira democracia? Eis aqui a resposta de Wolin: “Como o objetivo principal das eleições é escolher legisladores flexíveis à serviço dos lobistas, tal sistema merece ser chamado de “deturpado ou de governo clientelista. (…) Trata-se de algo poderoso que atua para a despolitização da cidadania e que, ao mesmo tempo, pode ser com razão caracterizado como um sistema antidemocrático”.
Eis também aqui como o jornalista crítico aqui citado explica, de forma complementar, essa crítica de Wolin, no fundo bem devastadora: “As campanhas políticas raramente discutem questões substantivas. Estão concentradas em promover personalidades políticas manufaturadas, retórica vazia, relações públicas sofisticadas, publicidade enganosa, propaganda e uso constante de grupos focais e de pesquisas de opinião para poder embromar os eleitores repetindo o que eles querem ouvir. O dinheiro efetivamente substitui o voto”.
Todos os atuais candidatos à presidência, inclusive incluindo Bernie Sanders, – compreendem, para usar as palavras de Wolin, que “a substância do império é um tabu nos debates eleitorais”. O cidadão é irrelevante. Ele e ela nada mais são do que expectadores, autorizados a votar, mas depois esquecidos quando o carnaval eleitoral termina e as corporações e seus lobistas podem voltar ao negócio de governar sub-repticiamente.
Reavaliando a tese de Wolin
A apresentação aqui feita foi bem sumária, mas é preciso agora resumi-la um pouco mais. Segundo Wolin, há dois tipos de totalitarismo. Um deles existiu nos países ditos socialistas e nos países fascistas, porque aí os interesses políticos fortes submeteram e direcionaram o sistema econômico e, para fazê-lo, dominaram a sociedade como um todo.
O outro se originou no correr do século XX, quando os interesses originados nos mercados passaram a comandar discreta, mas completamente, a política e a vida social como um todo nos estados nacionais capitalistas aparentemente democráticos. A dominação da política pelos interesses econômicos, segundo ele, justifica o adjetivo “invertido” aposto ao substantivo “totalitarismo”.
Ora, essa tese – modificada pelo que ainda se apresentará à frente – parece verdadeira e, por isso, merece ser apropriada em parte pelo pensamento crítico. De qualquer modo – julga-se aqui –, é preciso abraçar fortemente a tese da radicalização da democracia e do socialismo democrático para se contrapor a esse estado de coisas.
Entende-se usualmente por totalitarismo um sistema em que o poder de Estado passa a ser exercido de modo centralizado porque foi já foi tomado por um movimento político unitarista; havendo empalmado o poder, este movimento, sem reconhecer limites, busca então comandar a vida pública e privada como um todo. Wolin vai além afirmando que essa última caraterística também está presente no sistema em que o poder econômico domina de modo secreto, mas completamente, sobre a aparência de sistema democrático. Em ambos os casos, tem-se que a vontade política e, assim, a capacidade de deliberação autônoma das pessoas-sociais, foi sequestrada e de algum modo anulada.
Contudo, é preciso observar criticamente que há tendências contra-arrestantes ao domínio totalitário nos países aparentemente democráticos, as quais se originam da anarquia conflituosa que é inerente ao capitalismo. E que se afirmam aí por meio de certas tradições políticas, das lutas sociais que engendram, assim como de uma crítica cultural constante. Elas impedem que o poder aí prevalecente se torne de fato total. Não se pode, portanto, deixar de considerar que existem diferenças importantes entre essas duas modalidades de exercício do poder na sociedade moderna e que estas diferenças precisam ser consideradas e avaliadas numa análise mais refinada.
De qualquer modo, a caracterização de totalitário parece se aplicar aos “socialismos” em processo de degeneração: certos líderes políticos que se apresentavam aí como “progressistas” governaram com mão extremamente forte e impuseram, sim, sacrifícios imensos às populações falsamente em nome da realização dos ideais de igualdade, justiça econômica, emancipação do homem pelo homem etc.
Essa mesma caracterização parece valer também para o regime nazista e para o regime fascista; entretanto, como estes dois últimos se caracterizaram sobretudo por uma desumanidade explícita, por fomentarem o ódio como forma de vida, assim como pelo genocídio justificado contra certas frações da população, não podem ser confundidos com os anteriores.
Na comparação que se segue, os regimes nazista e fascista, os quais cresceram na década dos anos 1930, não serão explicitamente considerados. É certo, porém, que eles se forjaram, então, com certas características políticas que parecem estar reemergindo, ainda que sob novas aparências, na atual crise estrutural do capitalismo contemporâneo. Eis que aquilo que está implícito nos regimes políticos das nações capitalistas ditas “democráticas” pode se tornar mais e mais explícito.
Agora, é preciso cumprir a promessa posta no quarto parágrafo desse artigo. É preciso questionar, até certo ponto, o modo como Wolin apresenta o problema do totalitarismo na sociedade moderna. Para fazê-lo – julga-se aqui – é necessário recuperar primeiro o sentido do termo socialismo nos textos de Karl Marx. Em consequência, é preciso examinar, tomando por referência O capital, o miolo da crítica do capitalismo feita por esse autor e como se pode derivar desta crítica tanto a ideia de sua superação possível quanto uma melhor compreensão das degenerações totalitárias.
Do socialismo em Marx
Marx apresenta os contornos do que entende por socialismo na seção sobre o fetichismo da mercadoria, logo no primeiro capítulo de O capital. Como ele mesmo explica, o produto do trabalho ganha um “caráter enigmático” no modo de produção capitalista porque assume aí a forma mercadoria: “o caráter fetichista do mundo das mercadorias provém (…) do caráter social peculiar do trabalho que produz mercadorias”. E este “caráter social peculiar” é fornecido pela forma da relação social de mercadoria, ou seja, porque esta relação social não se estabelece diretamente entre os homens, mas se configura como relação social indireta, isto é, como uma “relação social entre coisas”.
A forma mercadoria, ademais, apenas se torna uma forma social geral e, por isso, fundante de toda sociabilidade, nesse modo de produção; eis o que caracteriza do começo ao fim a totalidade social que se costuma denominar pelo termo “capitalismo”. Ora, o socialismo proposto por Marx vem a ser justamente um novo modo de produção que não está mais baseado na forma mercadoria e, assim, em seu fetichismo inerente. “O reflexo religioso do mundo real somente pode desaparecer quando as circunstâncias cotidianas, da vida prática, representarem para os homens relações transparentes e racionais entre si e com a natureza. A figura do processo social da vida, isto é, do processo da produção material, apenas se desprenderá do seu místico véu nebuloso quando, como produto de homens livremente socializados, ela ficar sob seu controle consciente e planejado. Para tanto, porém, se requer uma base material da sociedade ou uma série de condições materiais de existência, que, por sua vez, são o produto natural de uma evolução histórica longa e penosa.
Portanto, o socialismo para Marx visa superar a alienação, o estranhamento, a falta de liberdade real e não apenas a exploração do homem pelo homem. E, por mais que isto seja ignorado por marxistas e antimarxistas, caracteriza o socialismo como um modo de vida comunitário e radicalmente democrático, pois está constituído por relações sociais diretas – sem a supervisão de um Estado –, travadas e administradas pelos próprios seres humanos segundo a sua própria vontade: “Imaginemos, finalmente, para variar, uma associação de homens livres, que trabalham com meios de produção comunais, e despendem suas numerosas forças de trabalho individuais conscientemente como uma única força social de trabalho.
Da caracterização do socialismo feita por Marx é forçoso depreender que ele ainda não existiu na face da Terra. E que os assim chamados “socialismos reais” não foram ou são socialismos verdadeiros, mas experimentos históricos que tinham ou ainda tem como tarefa criar “penosamente” a “base material da sociedade”, uma base necessária para que pudessem vir a existir.
Nasceram em geral de revoluções que almejaram criar uma sociedade nova, pelejaram – ou ainda pelejam – para superar o subdesenvolvimento das forças produtivas, mas se desviaram (alguns mais e outros menos) do caminho do socialismo e acabaram por retornar ao capitalismo. As grandes esperanças, então suscitadas, morreram; sobrou apenas um profundo suspiro e uma melancolia que parece não acabar nunca. Entretanto, como a história não acabou, outros movimentos, sob novas bases, poderão sobrevir fazendo renascer a esperança.
O sistema de acumulação centralizado
Mas, nesse entretempo, uma questão se impõe: se aqueles experimentos históricos que fracassaram não chegaram a ser realmente socialismos, o que foram então? Se o capitalismo é, em síntese, um sistema descentralizado de acumulação, eles o contrariaram, mas apenas até certo ponto. Constituíram-se como sistemas centralizados de acumulação que suprimiram amplamente a propriedade privada dos meios de produção e, assim, a concorrência dos capitais particulares, portanto, o capitalismo enquanto tal, mas não suprimiram nem a forma mercadoria com o fetiche que lhe é próprio nem o fetichismo acumulativo da relação de capital.
Em particular – e isto é muito importante – a força de trabalho não deixou de assumir a forma de mercadoria nos sistemas centralizados. No capitalismo propriamente dito, a força de trabalho está disponível no mercado e é vendida pelos trabalhadores individuais diretamente para os capitalistas particulares, de tal modo que eles se subordinam, assim, formal e realmente, ao capital.
No sistema centralizado, a força de trabalho está disponível para o Estado e é vendida como mercadoria pelos trabalhadores individuais para as empresas estatais que tem ainda a tarefa prioritária de acumular capital, de tal modo que eles também aí se subordinam, formal e realmente, ao capital. Eis que a relação de capital existiu antes e pode existir além do capitalismo. E ela continuou existindo nesses países; em consequência, mesmo a exploração supostamente abolida continuou existindo aí e sob condições políticas muito duras.
Em ambos os casos, portanto, as relações sociais implícitas na venda/compra da força de trabalho como mercadoria são, sim, indiretas – isto é, são portadas pelas coisas que assim se transformam em coisas-agentes. Num caso, a mediação da transação é feita pelo mercado (sem a intervenção direta do Estado), no outro esta é feita principalmente pelo Estado.
Este, aliás, não só não foi suprimido enquanto tal no sistema centralizado, tal como exigia a crítica da economia política de Marx, mas tendeu a ser tornar absoluto. É por isso que o sistema de acumulação centralizado se configurou sempre como autoritário e mesmo, no limite, como totalitário. É daí que advém a aparência real de que a economia, nesse sistema, é dominada pela política – política esta que está sempre conduzida aí pela classe burocrática que domina o aparelho do Estado.
O Estado, em ambos os casos, enquanto categoria e modo de ser real, tem de ser pensado a partir da contradição entre a aparência e a essência do modo de produção. No capitalismo, as relações sociais aparecem como relações entre indivíduos, proprietários mercantis, configurados perante a nação como igualmente cidadãos, mas eles estão essencial e estruturalmente diferenciados entre capitalistas, os proprietários dos meios de produção, e trabalhadores explorados, aqueles que possuem quase que apenas a sua própria força de trabalho. O Estado, entidade que se encontra na e acima da sociedade e que exerce o poder de soberano, põe, então, a unidade tensa dessa contradição. [iii]
Já nos sistemas centralizados de acumulação, as relações sociais aparecem como relações entre “camaradas”, coproprietários do capital socializado, conformados como membros de um Estado dito soviético (falsamente, é claro), mas que, na verdade, estão também estruturalmente diferenciados entre trabalhadores e dirigentes/burocratas; estes últimos, em geral, são membro do partido supostamente comunista.
Como em ambos os casos se têm uma unidade contraditória entre dominadores e dominados, exploradores e explorados, tais aparências são ideológicas; elas escondem os significados reais e, assim, impedem a apreensão das relações sociais que se perpetuam nos sistemas de acumulação aqui considerados, sejam eles centralizados ou descentralizados.
Totalitarismo em potência
Agora é preciso entender por que diferem tanto os regimes políticos que vigoram em geral nesses dois tipos de sistemas de acumulação. Por que um deles é capaz de abrigar – no limite – o totalitarismo e o outro pode acolher – como tendência que pode aflorar – o totalitarismo invertido?
A resposta a essa última pergunta – assim julga aquele que aqui escreve – requer a retomada de uma tese clássica do materialismo histórico: a superestrutura da sociedade – e nela se inclui o sistema político – está condicionada (mas não determinada) pela base, ou seja, pela estrutura das relações sociais inerentes ao modo de produção. Ora, os modos de produção aqui considerados são sobretudo modos de acumulação de valor na forma de capital – e não especialmente modos de produção de riqueza efetiva, ou seja, de valores de uso.
No primeiro caso, o sistema de acumulação é centralizado, ou seja, é planejado, comandado e regulado a partir do Estado. Desse modo, os imperativos e mesmo os meros interesses que provém da acumulação se tornam ações efetivas por meio de um corpo burocrático rigidamente hierarquizado. A sociedade assim moldada se torna – como foi dito por outros – uma grande indústria. Ora, este corpo não apenas toma as decisões de política econômica de um modo centralizado – assim como decide em geral também sobre as questões sociais em geral –, mas também se constitui como o principal beneficiário dos resultados do processo econômico.
É, pois, evidente que a forma “democracia liberal” que predomina como regime político no capitalismo é inadequada e mesmo incompatível com esse sistema de acumulação de capital. Esse sistema requer o regime político formado pelo partido-Estado em que o povo até vota, mas o seu voto é irrelevante, pois quem decide é a burocracia à serviço do capital estatizado.
Na autêntica forma “democracia liberal”, o sistema de acumulação é descentralizado. Os interesses dos capitais particulares, os quais operam sob o regime da concorrência, sob os suportes de uma miríade de capitalistas, costumam se expressar em geral por meio de uma representação política plural reunida em assembleia, parlamento, mas também num corpo executivo algo diversificado. É por isso que a democracia representativa (de preferência restrita aos proprietários) apresenta-se como a forma ideal do regime político que governa quando a base econômica da sociedade se configura propriamente como capitalista.
Como a legitimação política da dominação social e econômica exigiu no correr do século XX que os representantes fossem escolhidos por meio de processos eleitorais com sufrágio universal, abriu=se espaço e mesmo requereu o desenvolvimento de um sistema muitas vezes cínico em que “o povo elege, mas quem governa é o capital”. Este sistema, é evidente, pode adquirir caraterísticas que o fazem se constituir como implicitamente totalitário, aparentemente invertido, tal como observou corretamente Sheldon Wolin.
Segundo Chris Hedges, esse autor previu o que iria acontecer no capitalismo governado pelo neoliberalismo. Ora, o totalitarismo mascarado está agora arrancando a sua tenebrosa máscara. É, pois, por isso, que atualmente muitos neoliberais, que pretendem figurar como só liberais, também estão assustados…
Notas
[i] Hedges, Chris – Sheldon Wolin and inverted totalitarianism. Truthdig: 2/11/2015.
[ii] Tradução do título original do livro que ainda não tem versão em português: Democracy incorporated – managed democracy and the specter of inverted totalitarianism.
[iii] Assim, o Estado totalitário é um limite em que este engloba o mercado e as empresas. Marilena Chaui parece, pois, ter razão quando diz no artigo publicado nesse site, intitulado Neoliberalismo: nova forma de totalitarismo (https://aterraeredonda.com.br/neoliberalismo-a-nova-forma-do-totalitarismo/), que “em lugar da forma Estado absorver a sociedade, como acontecia (…), vemos ocorrer o contrário, isto é, a forma da sociedade [mercados e empresas] absorve o Estado.
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