Sobre o aparecer a qualquer preço
✅ Receba as notícias do Brasil 247 e da TV 247 no canal do Brasil 247 e na comunidade 247 no WhatsApp.
Na minha infância, cada vez mais longínqua, vivida no bairro Santos Dumont, em Aracaju, havia esse dizerzinho: “Quer aparecer? Bote um penico na cabeça e diga que é astronauta.” Essa recomendação cirúrgica ficava nos âmbitos domésticos. Os adeptos de inclinações circenses serviam de motejo e não causavam maiores estragos. Não se abalava um mundo tão provinciano com celebridade instantânea. A vida era um bem que se levava aos trancos e remansos. A morte severina passava nos caixões de anjinhos levados por mãos paternas, seguidos por uma reca de pimpolhos serelepes.
Trago essa lembrança oral para contrapô-la aos dias que passam, marcados por uma predisposição doentia de se sair do anonimato a qualquer custo. Os exemplos pululam por aí alimentados nas famigeradas redes sociais. Felizmente, para o bem e para o mal, são elas a fonte de disseminação e do clamor para a punição dos que têm um celular na mão e nenhuma ideia na cabeça. Ou melhor, até têm: tosca, indigente, desumana. Essa tendência foi amplificada pelos distúrbios dos tempos bolsonaristas e seu rastro de destruição, sob os quais penaram índios, pretos e pobres. Não escaparam nem as franciscanas carpas do Palácio da Alvorada e as esguias emas da Granja do Torto.
Um dado ululante: “vídeo que viralizou”, no qual se destila um monte de excrescências boca afora, geralmente é de alguém afeito aos discursos e práticas violentas dos últimos quatro anos. Houve uma contenção dessa derrama devido ao resultado eleitoral em outubro do ano passado, mas tudo indica que essa herança nefasta terá sobrevida nesses tristes trópicos.
A médio prazo, há duas medidas para as rimas pobres (com o perdão dos poetas) dessa desgraceira, cujo ponto máximo foi o vergonhoso 8 de janeiro. Primeiro, o uso incisivo da lei, doa a quem doer, seja para fardados, seja para civis. Segundo, priorizar a educação para que seja o vetor maior da desbarbarização. Nunca é demais lembrar, como escreveu o filósofo Theodor Adorno, que “a exigência para que Auschwitz não se repita é a primeira de todas para a educação”. A tragédia dos yanomami soa como uma triste referência a um ícone do horror no século XX.
Pego aqui apenas quatro exemplos recentes do mote que move essas linhas. Em Maués, município de Manaus, duas jovens médicas gravaram um vídeo debochando de crianças atingidas por raios; também na Amazônia, três estagiárias de enfermagem debocharam de pacientes “que morriam” numa unidade hospitalar de Manacapuru; em São Paulo, uma influenciadora (branca) desabafa após quase ser assaltada por quem “nasceu com a cor errada, na classe social errada”. Por fim, Mauricio Marcon, deputado do Podemos (RS), gravou vídeo dizendo que “a Bahia é um Haiti, lugar sujo e pichado”.
No caso das moçoilas medicinais, houve exoneração e cancelamento de contrato. O deputado, como é usual nesse tipo de preconceito, pediu desculpas e “vida que segue” sob seus 140 mil votos. A moça assaltada, cuja performance no vídeo está mais para uma (péssima) atriz à procura de um novelista da Globo, deve estar feliz pelo público angariado nos quase dois minutos do Tik Tok.
Enquanto isso, não hesito em recolocar minhas retinas sobre Machado de Assis e sua cria mais filosófica, o inelutável Brás Cubas: não devemos nos privar “da estima dos graves e do amor dos frívolos, que são as duas colunas máximas da opinião.” Assino embaixo à espera que o bom senso substitua o narcisismo jeca sob o invólucro de lacrações e outros bichos. “No futuro, todo mundo será famoso por quinze minutos”. Infelizmente, essa maldição do pintor Andy Warhol reduziu-se a míseros segundos.
Assine o 247, apoie por Pix, inscreva-se na TV 247, no canal Cortes 247 e assista:
Este artigo não representa a opinião do Brasil 247 e é de responsabilidade do colunista.
Comentários
Os comentários aqui postados expressam a opinião dos seus autores, responsáveis por seu teor, e não do 247