Sobre gaiolas e varandas
me incomodava ainda mais o fato de que o pobre passarinho cantava. porque eu jurava que o canto dos pássaros era uma ode à liberdade e uma expressão genuína e alada de um ser integralmente feliz
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“sem a música, a vida seria um erro” nietszche
quando eu era criança, tínhamos um vizinho, delegado de polícia, que mantinha um curió preso a uma gaiola.
incomodava-me ver aquele animalzinho condenado a um crime que, eu sabia, era impossível ele ter cometido.
me incomodava ainda mais o fato de que o pobre passarinho cantava. porque eu jurava que o canto dos pássaros era uma ode à liberdade e uma expressão genuína e alada de um ser integralmente feliz.
por isso, quando me embrenhava no cerrado, eu gostava de assoviar, tentando imitá-los, querendo transmigrar pra mim um pouco daquela euforia fagueira que eles emanavam afoitos.
porém, analfabeto na língua pássara, estava surdo para o que aquela criatura da gaiola tentava dizer na sua expressão musical.
talvez, eu refletia, empático, o passarinho esteja feliz por receber alpiste todos os dias e com hora marcada; deve gostar de saber que tem alguém que se importa com ele e lhe trate como um filho caçula.
lembro de um dia ter provocado: “papai, todo pássaro canta, mas nem um pássaro compõe, quem compõe as músicas pássaras?”
deus, ele me disse.
achei uma saída fácil, falsa e mentirosa.
até que um dia eu tive um estalo.
na vitrola do meu pai tocava um samba do cartola. quando ouvia cartola, meu pai, que era carrancudo, sorria e cantarolava com um copo de cerveja na mão; às vezes pegava minha mãe pela cintura e valseavam pela sala, salientes.
mas eu cresci e, crescendo, cresceu em mim uma curiosidade inquieta e investigativa.
notei que a música do cartola era um canto cheio de tristeza e melancolia; papai sorria enquanto cartola chorava porque ele era analfabeto na língua lírica, surdo para a poesia.
foi então que identifiquei meu coroa naquele delegado. e pensei: e se o passarinho fosse uma espécie de cartola em pluma e prantos?
então, peguei um gravador e gravei o encanto daquela ave canora. e percebi, nas mínimas minúcias, que diferia um pouco do canto das aves livres.
guardei por anos aquele canto enigmático. e sempre o ouvia, sempre ao por do sol; intrigado.
o tempo passou, cresceram-me asas nas costas e eu voei da casa dos meus pais.
já adulto, estudando línguas vernáculas na universidade de brasília, deparei-me com a linguística, a disciplina mais apaixonante do mundo.
li as observações estruturalistas de saussure e estudei a gramática gerativa criado pelo chomsky.
estudei fonética e fonologia da língua xhosa, da áfrica do sul, com o seu musical, lindo, percussivo e indefectível click sound, e a morfologia da língua tupi.
então, num certo por de sol colorido em brasília, ouvindo pela enésima vez o canto daquele curió, tive um insight.
e fiz como naquela fábula farsesca do champollion diante da pedra de rosetta, a decifrar o enigma dos hieróglifos egípcios.
peguei meu bloco de anotações e fui decifrando as cifras do canto ávico: fififi, fafafa, furi furi, fara fara...
ia anotando as repetições, as mudanças de entonação e de respiros e enxerguei uma sintaxe, montei um léxico, compreendi a estrutura frasal, a composição de sintagmas e, bingo, transcrevi a música que a ave cantava.
ei-la:
“quero assistir ao sol nascer / ver as águas do rio correr, ouvir os pássaros cantar / eu quero nascer quero viver / deixe-me ir preciso andar/ vou por aí a procurar/ rir pra não chorar...
isso foi tão libertador.
eu chorei sorrindo.
palavra da salvação.
#ficaemcasa mas fica de boa!
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