Sobre a austeridade. Na Europa

Austeridade reproduz mais austeridade, mais desigualdade, mais concentração de renda, mais pobreza e redução das funções públicas do Estado. Austeridade fulmina a política



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O debate sobre a austeridade, tal qual está se dando hoje na Europa, vem do século passado, principalmente após as reformas feitas pela senhora Thatcher, na Inglaterra, na crise de crescimento da economia inglesa dos anos 80. Aquelas reformas desmantelaram o poder dos Sindicatos, vinculados ao trabalhismo inglês, que, até então, eram parceiros do Estado e do grande empresariado industrial, desde os esforços nacionais feitos para a recuperação e modernização industrial do pós-guerra. A recuperação se deu através de formas contratuais específicas, pelas quais ali se desenvolveu o contrato social-democrata europeu.

Hoje, com diferentes graus, vários países da União Europeia tem sido obrigados pelo Banco Central Europeu -leia-se governo alemão e Banco Central Alemão- adotar “políticas de austeridade”, em função da brutal dívida pública destes países e da sua presumida incapacidade de saldá-las. Argumenta-se, como diz o professor Vincenç Navarro –emérito professor em universidades europeias e americanas, ex-assessor da sra. Hillary Clinton, como coordenador do grupo da Reforma do sistema de saúde americano- “que a redução do déficit público é a chave para recuperar a confiança dos mercados financeiros(…) com mais e mais cortes nas transferências e nos serviços públicos do Estado”.

Estas políticas, criticadas pelo professor Navarro e milhares de cientistas sociais, políticos de diversas ideologias e origens, acadêmicos ou não, economistas e gestores públicos em todo o mundo, são apresentadas como se fossem políticas universais, “neutras”, verdadeira razão de estado e espada luminosa dos que defendem o interesse público. Em regra, são as preferidas por nove entre dez dos comentaristas econômicos da grande mídia, que não poupam críticas ao Estado “gastador”, à falta de sabedoria dos agentes públicos que defendem outras saídas. Mas o fazem sem abordar o debate de fundo: quais os resultados destas políticas? A quem ela beneficia efetivamente? De quem ela exige sacrifícios? E mais: quais as políticas de outra natureza que se opõem à dita “austeridade”?

O Presidente Reagan, nos anos 80, confrontado com a crise de eficiência e, consequentemente, de acumulação das grandes empresas americanas, aplicou a receita sem vacilação: redução do valor real dos salários, aumento do desemprego para aumentar a competitividade, redução das despesas de prestações sociais, redução dos impostos para as classes superiores e, no plano político mais amplo (para unir o país contra as ameaças de “fora”), a retomada agressiva da “guerra fria”, com o deslocamento de vultosos financiamentos para a bomba de nêutrons, escudo antimísseis, “guerra nas estrelas”.

Compare-se, nos dias de hoje, como a União Europeia e os EUA – que chegou a “estatizar” indústrias automobilísticas durante a crise do “sub-prime”- enfrentam crises semelhantes, pela palavra dos seus mais autorizados representantes. No verão europeu de 2012, Mário Draghi, Presidente do Banco Central Europeu, afirmava que o “Banco Central Europeu fará tudo que for necessário para sustentar o euro, e, acreditem, isso será suficiente”. Em março de 2012, o Secretário do Tesouro americano Timoty Geithner, assinalava que é preciso calibrar com cuidado a mistura de “apoio financeiro e o ritmo de consolidação fiscal”, fazendo coro com o Presidente da Reserva Federal dos EUA, Ben Barnanke, que pedia mais estímulos contra o desemprego. O Presidente da Reserva Federal, diferentemente de Draghi, deixava claro que se a situação piorasse nos EUA, iria atuar para “apoiar o crescimento”.

Estas palavras são ditas, já dentro de uma situação “madura” de crise, que vem se arrastando há vários anos e, sobretudo, demonstram que as ditas políticas de austeridade não são aplicadas numa mesma medida. E que seu entendimento é diferenciado, mesmo nos países avançados, nos quais classes trabalhadoras e os setores médios ainda “tem o que perder”, sem cair na miséria absoluta. O empobrecimento, a olhos vistos, de uma grande parte dos assalariados que era de renda baixa é o sucedâneo de uma situação na Europa, particularmente na Espanha, Portugal, Grécia, Irlanda, França – entre outros países – que já tem bolsões de miséria dignos das regiões mais pobres da América Latina.

No terceiro trimestre de 2012, ou seja, no momento áureo de aplicação das políticas de austeridade, a dívida pública em relação ao PIB, na Zona do euro, era de 90%; comparada com o terceiro trimestre de 2011, ela subiu aproximadamente 5%. Neste trimestre, que foi considerado, financeiramente, o período de mais extrema gravidade para a estabilidade macro financeira da Zona do Euro, ela alcançara 86,6% em relação ao PIB. Fracasso total das políticas de austeridade, com a manutenção do desemprego entre os jovens, na Espanha, de mais de 40% e mais de 23% da força de trabalho total, com redução do poder aquisitivo dos trabalhadores, assalariados de todos os setores e, ainda, crise devastadora nos pequenos e médios negócios industriais e de serviços.

A elite financeira americana e as minorias mais ricas em geral, principalmente ligadas aos setores improdutivos da economia, a elite financeira e seus “managers” dos serviços correlatos (1% da população), segundo o professor Navarro, nos últimos cinco anos da crise, acumularam mais de dois trilhões de dólares. Enquanto isso aumentou as diferenças sociais nos EUA de modo alarmante e a Europa inteira decresceu: Espanha menos 1,5%; Grécia menos 5,2%; Itália menos 2,3%; Portugal, menos 3%.

Não é preciso muito esforço para compreender que as políticas de austeridade têm beneficiários diretos e sacrifícios ampliados em toda a sociedade. Mas ela precisa, ainda, reduzir a margem de risco dos “financiadores” aparentes da recuperação, que supostamente são as agências financeiras. Mormente aquelas que dão as “notas”, os “graus” de investimento, para os países endividados e, ao mesmo tempo, são as que manejam o mercado financeiro e alimentam, politicamente, o circuito informativo global, destinado a convencer a todos que a política deve ser substituída por medidas supostamente técnicas, de necessidade indiscutível.

Os recursos da recuperação, contudo, vem do Estado e são dinheiro público. Ou seja, os recursos públicos, para a recuperação da economia, não são entregues pelos governos às empresas em crise -de qualquer tamanho- mas aos agentes financeiros privados, que manipulam a taxa de juros e a acumulação sem trabalho. A diminuição do risco especulativo, necessária, aliás, para pacificar o mercado e aliviar tensões, exige que haja plena previsibilidade para o pagamento dos países credores, pelos endividados.

Daí um segundo passo: a redução das transferências públicas (diminuição das pensões, redução da compra de serviços e calotes nas pequenas e médias empresas, diminuição real e irrestrita dos salários dos servidores públicos, redução dos programas de transferência de renda) e dos serviços públicos essenciais (saúde, educação); e depois, ainda, um terceiro passo, com sucesso parcial na Inglaterra: a privatização de estradas (de outras empresas prestadoras de serviços públicos que são capazes de dar lucro sem competição e sem risco, para os investidores privados), porque ninguém deixa de tomar água, por exemplo, ou levar um filho ao Hospital, para ser operado de uma apendicite.

Austeridade reproduz mais austeridade, mais desigualdade, mais concentração de renda, mais pobreza e redução das funções públicas do Estado. Austeridade fulmina a política e “fascistiza” os conflitos, porque a violência da concentração de renda e de poder, que ela causa, desacredita a democracia e a política, desacredita as eleições e os governos. Me digam quais os sacrifícios que os 1% dos mais ricos de um país fazem, para tirar seus respectivos países das suas crises, que eu mudo de opinião. Por enquanto eu fico com esta.

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(*) Artigo publicado originalmente no Jornal do Comércio, de Porto Alegre.

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