Semipresidencialismo quer transformar Lula numa Rainha da Inglaterra

"Quando os brasileiros e brasileiras discutem um país sem Bolsonaro, a classe dominante já prepara atalhos para enfraquecer a soberania popular", escreve Paulo Moreira Leite, do Jornalistas pela Democracia

Lula no Congresso Nacional do PT
Lula no Congresso Nacional do PT (Foto: Pedro Stropasolas)


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Por Paulo Moreira Leite, para o Jornalistas pela Democracia 

Num momento em que se tornou possível pensar o Brasil pós-Bolsonaro, ressurge uma velha fantasia destinada a dividir brasileiros e brasileiras, diminuir o ímpeto por mudanças baseadas na vontade da maioria e preservar a ordem instituída  a partir do golpe parlamentar de  2016. 

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Seu nome é semi-presidencialismo, lançado  pelo José Roberto Barroso, ministro do STF, dando início a um coral já numeroso de vozes conservadoras. 

No Brasil de hoje, a proposta envolve um processo regressivo do ponto de vista democrático, comum  na história de povos e países, como demonstra o  historiador Arno Meyer, de Princeton. 

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No clássico "A Força da Tradição - A persistência do antigo regime," lançado em 1987, disponível nos bons sebos do país, Meyer se debruça sobre uma das grandes transições da história universal -- as mudanças ocorridas na Europa entre 1789 e a 1914, momento iniciado pela Queda da Bastilha e encerrado pela Primeira Guerra Mundial. 

Com um pensamento crítico que supera as distancias óbvias determinadas pela história e a geografia, o livro apesenta um debate com grande utilidade para entender o que se passa no Brasil de nossos dias.  

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Arno discute a construção de uma aliança entre a burguesia ascendente e a nobreza decadente, num acordo de contrários que permitiu o amortecimento e por fim o abandono das reivindicações mais profundas do povo, resumidas no emblema Liberdade-Igualdade-Fraternidade. 

O saldo foi um universo de desigualdade e superexploração que deu origem ao capitalismo selvagem do século XIX, período anterior ao Estado de bem-estar social e aos gigantescos desafios trazidos pela Revolução Russa de 1917. 

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No Brasil de 2021, quando o desmonte do bolsonarismo ocorre à luz do dia -- ainda que o  desfecho final esteja longe de assegurado -- o semi-presidencialismo é o nome de um pacto, num movimento impulsionado pelo debate sobre o destino de Bolsonaro, cuja permanencia no cargo representa uma ameaça assumida à democracia. 

A idéia, ainda em forma de rascunho, consiste em diminuir poderes e atribuições dos futuros presidentes, que passariam a ser partilhadas com o Congresso. 

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Essa proposarta envolve outro debate, também: o que fazer com a herança de destruição do bolsonarismo.  Este será a grande questão da sucessão eleição presidencial. O semi-presidencialismo surge nesse contexto. 

Diante da força reconhecida de Lula, candidato comprometido com uma plataforma de mudanças em profundidade, a opção conveniente às forças que podem até aceitar a ideia de afastar Bolsonaro do Planalto, mas planejam preservar uma herança de destruição em toda linha, é oposta. 

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Bolsonaro até pode sair -- mas sua obra deve ser preservada de qualquer maneira. 

Basta recordar que no DataFolha de 7-8 de junho nada menos que 49% dos empresários do país disseram aprovar o governo Bolsonaro para se ter uma noção da força que tentará impedir qualquer  projeto de reconstrução da nação brasileira, em bases coerentes com as necessidades da maioria. 

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Lula? Só se for uma rainha da Inglaterra, com poderes simbólicos e nenhuma força efetiva, subjugado pelo Congresso e, se for o caso, também ameaçado pelo Judiciário. 

Poderá até recuperar os direitos tolhidos pelo tuíte do general Vilas Boas em 2018, que completou o serviço da Lava Jato, mas deixará de ter poderes para cumprir o programa de reconstrução da nação que desde já impulsiona sua presença na cena política.  

O semi-presidencialismo cumpre essa função -- neutralizar o único poder escolhido pelo voto direto do povo, onde cada cidadão, miserável ou gravatão, vale um  voto. 

Vivemos num país onde o Congresso é uma reserva de caça das oligarquias regionais, que ali se deliciam com trocas de favores e verbas públicas. Enquanto isso,  o Judiciário é um poder ocupado em garantir os interesses históricos da classe dominante, bem explicou a professora Maria Silvia de Carvalho Franco num trabalho antológico de sociológia, Homens Livfres na Sociedade Escravocrata. Num Estado com tais característias,  a presidência da República possui um potencial único para promover mudanças de interesse da maioria -- como demonstra a história de Vargas, JK e do próprio Lula.

Não por acaso, os poderes presidenciais sempre estiveram na linha de ataque do conservadorismo verde-amarelo, incapaz de conviver democraticamente com a soberania popular, que procura vencer por golpes frontais -- ou atalhos supostamente astuciosos, como mostra nossa história recente.  

Depois que a resistência popular assegurou a posse de João Goulart, em 1961, um projeto  parlamentarista tornou-se instrumento para desgastar o governo e tentar esvaziar seus poderes legítimos. 

Acabou derrotado nas urnas de um plebiscito pela humilhante proporção de 4 votos contra e apenas 1 a favor -- ou 9,4 milhões contra 2 milhões -- mas um ano e meio depois Jango seria deposto por um golpe militar, o mesmo que não demorou para cassar os direitos politícos de Juscelino,  então   concorrente imbatível no pleito já marcado para 1965, mas cancelado no mesmo processo. 

Em 1988, derrotada na Constituinte, a bancada parlamentarista conseguiu aprovar uma emenda que previa a realização de um plebiscito, realizado em 1993 -- mais uma vez o presidencialismo saiu vitorioso, por 37 milhões de votos contra 16,5 milhões. Após essa decisão, tomada pela segunda vez em 30 anos, sempre pelos principais interessados -- os eleitores -- a simples idéia de mudar o regime político tem uma inegável natureza elitista, para empregar uma expressão elegante, a menos que seja colocada em outro ambiente político, como uma Assembléia Constituinte, com direitos plenos de redesenhar a ordem política do país. 

Com o fantasma de Lula no horizonte, o semi-presidencialismo já inquieta juristas comprometidos com a democracia. 

"É altamente discutível que a introdução de elementos parlamentaristas no sistema de governo presidencial brasileiro seja constitucionalmente viável apenas por emenda constitucional", escreve o professor Marcelo Neves, autor de "A Constitucionalização Simbólica", reconhecida internacionalmente. 

"A Constituição determinou que a opção entre presidencialismo e parlamentarismo, assim como entre república e monarquia, fosse tomada diretamente pelo povo, em plebiscito," lembra ele, que acrescenta: "o plebiscito foi realizado como previsto, tendo o povo brasileiro escolhido, por folgada maioria, escolhido a república presidencial como sua forma e seu sistema de governo". (Edição eletronica do Estado de S. Paulo, 30/7/2021).  

Num país onde a possibilidde de escolher o presidente da República é um dos poucos direitos políticos que reservados a todos os brasileiros, independente de renda, classe social ou cor da pele, o semi-presidencialismo é, na verdade,  uma semi-democracia. Este é o projeto em discussão. 

Alguma dúvida? 

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