Sem ilusão
"O bem que os brasileiros esperam não é o retorno quimérico ao passado, mas a ruptura com o legado colonial", escreve o colunista Manuel Domingos Neto
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Lula teve mais votos do que seu adversário. Governadores progressistas foram eleitos no primeiro turno. Outros, podem ganhar no segundo. O PT aumentou sua bancada na Câmara... Polianas apaziguam almas inquietas. Preferem não encarar o perigo.
O fato é que um Mourão sem carisma toma a vaga de um ícone da resistência democrática. O impiedoso Pazzuello é campeão de votos no Rio. Um ex-juiz destroçador de empregos, de capacidades técnicas e de instituições ganha cadeira no Senado. Um destruidor de florestas e um astronauta que menospreza a ciência são consagrados no poderoso e civilizado estado de São Paulo. Um desconhecido supera Haddad se apresentando como cumpridor de “missão do Capitão”.
Impossível menosprezar a possibilidade de reeleição do atual presidente. A maioria dos brasileiros não tem noção do que isso representa para suas vidas. Muito menos alcança a significação mundial desta eleição.
O que as sondagens de intenção de voto não previram foi a capacidade de articulação e mobilização de uma vasta, intrincada e azeitada (endinheirada) rede de atores políticos decididamente mobilizados e sob coordenação eficiente.
Com inexcedível capilaridade, espalhada em cada pedaço de chão, capaz de responder em tempo real aos estímulos de um emissor não claramente identificado, essa rede conduz as emoções coletivas. Sabe, inclusive, manipular jornalistas, acadêmicos e líderes políticos tarimbados.
Por acaso, os calculadores de intenção de voto detêm o mapa das ruas do Brasil dominadas por milicianos? Teriam noção de como funciona o controle territorial estendido de norte ao sul do país?
Dimensionariam efetivamente o poder das milhares de “igrejas” sobre milhões de desesperançados?
Fariam uma ideia das profusas e densas correias de transmissão da desconhecida “família militar”?
As análises do que ocorreu giram em torno de “migrações” de votos (quem teria sido beneficiado pelo “voto útil”), pendores do baronato financeiro, reacionarismo de homens endinheirados, reações de integrantes de tribunais superiores...
Levam em conta o Brasil de verdade? Conhecem mesmo esse Brasil?
As análises tendem a pressupor que o nordestino vota em Lula porque passa fome e é manipulável por crendices. Não levantam a hipótese de que seja mais infenso ou resiliente aos choques cognitivos ou ao pavor moral bem programado por terroristas da internet. Repelem a ideia de que o Brasil se nordestinize políticamente.
As análises tendem a pressupor um Brasil em que os golpes se davam com mobilização de tanques, não com o manuseio de ansiedades e temores coletivos. Não captam que os comandantes militares, além de conduzir fileiras, foram treinados para conduzir operações “psicossociais”.
A esquerda institucional parou, faz tempo, de chamar os mais sofridos à luta. Acostumou-se a convocá-los às urnas para consagrar representação política prometedora de benesses. Ora, as urnas foram arrumadas para manter a ordem iníqua. O presidente atinge o coração de muitos quando, encarnando o sistema em sua essência cruel, conclama contra o sistema.
Contra esse farsante, Lula deve chamar o povo para mudar o Brasil, não para retornar ao tempo em que o povo comia picanha, viajava de avião e tinha chance de alcançar o ensino superior.
A política encerra a promessa de um bem, dizia Aristóteles. O bem que os brasileiros esperam não é o retorno quimérico ao passado, mas a ruptura com o legado colonial.
Lula deve apostar na inteligência do povo e descrever tim-tim por tim-tim o que pensa em fazer para mudar o Brasil. Ainda dá tempo.
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