Seculares e peregrinos lutam por Israel, enquanto aumenta a revolta na Palestina

Israel realizou mais eleições nos últimos 8 anos que quase todos os países, e nenhum governo parou de pé. Este também não deverá parar

(Foto: Aquiles Lins)


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As notícias da imprensa que reportam no Brasil o que está acontecendo em Israel, em geral, tendem a superestimar as habilidades pessoais do atual primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, em detrimento de uma compreensão mais social do que se passa por lá.

Para quem não sabe, há semanas protestos de massa reúnem sempre mais de 100 mil pessoas (em um país de 7,5 milhões de judeus e 10 milhões de israelenses) contra uma proposta de reforma do judiciário que, na prática, permitiria ao executivo majortariamente nacionalista e religioso assumir o controle da Suprema Corte. Os atos têm escalado o tom e até ultrapassado as fronteiras, com lobbys tradicionais pró-Israel nos EUA se somando aos esforços eloquentes contra o que chamam de “mudança de regime”. Por sua vez, membros do atual governo e até o filho do primeiro-ministro já chamaram manifestantes de terroristas.

Essa disputa radicalizada, no entanto, não deve ser confundida como se fosse mera artimanha de um político oportunista para aumentar seu poder ou se blindar de denúncias de corrupção. O que está em jogo é algo muito mais profundo. E é exatamente por isso que tanta gente se mobiliza agora para estar nas ruas.

A começar pela prioridade estabelecida para minar o poder das cortes; Que não foi introduzida de repente na ordem do dia! Os grupos políticos que a defendem são, desde sempre, os que assumiram posições incendiárias e ultraradicais contra sentenças que, por exemplo, mandaram evacuar assentamentos ilegais na Cisjordânia. São os mesmos grupos que há anos também pleiteiam a dispensa do alistamento militar obrigatório para religiosos ortodoxos e a segregação de espaços públicos para homens e mulheres.

Mesmo que a proposta de reforma seja derrotada agora, tudo indica que algo semelhante seria ser reapresentado em seguida. Porque, precisamente, não é algo que apareceu por ocasião no noticiário, mas uma demanda constante de grupos que constituem uma proporção cada vez maior do total de judeus na população israelense.

Se forem observados os padrões de constituição de Israel desde sua Declaração de Independência, em 1948, veremos que o primeiro fluxo de diáspora inicialmente é de sobreviventes da Segunda Guerra Mundial ou ex-combatentes e partisans. Nos anos seguintes, após os conflitos com países muçulmanos, houve um novo influxo de imigrantes da região do Oriente Médio. E por fim houve um grande influxo de judeus oriundos da antiga União Soviética, quando ocorreu a sua dissolução no início da década de 1990. De lá para cá, ou seja, há cerca de trinta anos o fluxo de imigrantes judeus para Israel não é de refugiados propriamente - ainda que o antissemitismo exista nos países de origem - mas principalmente de religiosos e nacionalistas judeus (sionistas) atraídos pela vivência em um país de religião e etnia - oficialmente - judaica.

Em diversos kibutz (cidades tradicionais de colonos judeus em Israel) ouve-se mais o inglês, por exemplo, do que o hebraico. Porque a proporção neles de americanos, a maioria entre estes de religiosos, é tão grande quanto em algumas cidades dos EUA. Aliás, grupos de religiosos estão bem organizados para isso, eles trazem levas constantes de novos religiosos a cada período de alguns meses, colaboram com eles na sua ambientação e na sua absorção completa na nova sociedade. São verdadeiras companhias de imigração modernas, com influências variadas. E no caso dos religiosos, há uma crença mítica no significado de repovoar o lugar.

Por outro lado, a comunidade de brasileiros judeus em Israel, por exemplo, assim como ocorre no caso dos demais judeus de países latinoamericanos, é formada em grande medida por pessoas atraídas por boas oportunidades de emprego e renda. A razão é óbvia. São oriundos de países sub-desenvolvidos, onde são escassas as oportunidades de viver um estilo de vida de primeiro mundo. Estes, como outros tantos imigrantes, têm preferido cidades cosmopolitas, onde reproduzem um estilo de vida mais próximo ao que tinham nos países de origem. Tel-Aviv ou Haifa permitem a eles aproveitar as boas oportunidades de trabalho em Israel e, ao mesmo tempo, manter um estilo de vida secular, com convívio em diversidade com outras etnias e religiões, além de ter bom nível de respeito aos direitos de mulheres e LGBTIA+.

Há, portanto, padrões duplos. Por um lado, os religiosos e nacionalistas, imigrando através de instituições religiosas ou sionistas, e um outro fluxo de pessoas seculares, de várias religiões, etnias, sem-religião ou até não-judias, que tem preferido as cidades mais diversas.

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Esse padrão da imigração ainda se soma a uma dinâmica local que acentua a mudança demográfica. Enquanto a taxa de natalidade entre judeus ortodoxos é superior a 4 filhos por cada mulher, entre judeus vivendo no centro de Tel-Aviv não chega a 1. Israel tem altas taxas de natalidade e de crescimento populacional, mas esse crescimento é sustentado basicamente por famílias religiosas.

A conta fecha em uma situação em que os seculares e cosmopolitas caminham para ser uma minoria proporcionalmente cada vez menor. E isto por sua vez aumenta a dependência deles do judiciário para garantir seus direitos fundamentais sob a pressão de religiosos que querem impor normas ao país. Para citar algumas, eles pretendem explicitamente por fim do transporte público no shabat (sexta para sábado), o fim do reconhecimento de conversões ao judaísmo através de certas congregações, e introduzir a segregação de espaços públicos por gênero (uma doutrina no judaísmo ortodoxo). Isto em um país que já não possui casamento civil (de nenhuma espécie).

Na perspectiva dos religiosos e nacionalistas, por outro lado, observam-se uma maioria numérica alijada do poder por uma elite secular. Eles questionam por que uma minoria cada vez menos representativa em termos de votos deveria continuar tão hegemônica em instituições como a justiça ou em outras carreiras de Estado. Eles acreditam lutar por liberdade e representatividade. A visão deles é que uma reforma do judiciário viria trazer reconhecimento daquilo que de fato consideram a vontade soberana da maioria do povo.

Intelectuais anti-reforma alertam para uma “Tirania da Maioria”. E aqueles favoráveis costumam alertar para uma “Tirania da Minoria”. O fato é que o abismo entre as culturas de ambos não está diminuindo, e sim se acentuando. A tal ponto de judeus funcionários de empresas start ups, de alta tecnologia, estarem ameaçando deixar o país em caso de triunfo dos religiosos e nacionalistas sobre o judiciário.

À parte de toda esta disputa está a (enorme) população não-judia de Israel. Os árabes não olham com simpatia para nenhuma das partes, já que a atual Suprema Corte tem sido condescendente com assentamentos na Cisjordania há décadas, e sem sobressaltos, enquanto também faz vista grossa para o terror político de colonos radicalizados sobre vilas árabes, como acabou de ocorrer na cidade de Hawara, onde nacionalistas judeus atearam fogo em mais de 40 casas de cidadãos árabes, e ninguém foi preso.

Em Israel, a maioria dos árabes sob a jurisdição do país, ou seja, sujeitos à aplicação das normas aprovadas no Knesset, não possui direito de voto, pois são árabes cuja cidadania israelense não foi concedida. Cerca de 80% dos palestinos não tem direito de votar para eleger um governo palestino nem para eleger um governo israelense, e são considerados apátridas. E só 20% dos árabes vivendo sob leis israelenses é considerado israelense e pode votar. Uma seletividade que condena os árabes a no máximo serem uma diminuta minoria no parlamento, apesar de serem visivelmente numerosos pelas ruas das principais cidades de Israel, como Tel-Aviv, Haifa e Jerusalém

O duplo-padrão para o status jurídico dos árabes sob o governo isralense é exatamente o que fez praticamente todas organizações em direitos humanos atuando no país declararem que há um apartheid formal na Cisjordania, nos moldes da Convenção de Roma. Entre as instituições que apontaram isso estão o Btselem, a maior organização israelense em direitos humanos, e até as geralmente pró-Ocidentais Anistia Internacional e Human Rights Watch, além de relatores da ONU e dos seus braços para direitos humanos e educação.

Quer dizer, a forte polarização atual em Israel chama tanto atenção pela radicalidade, com os grandes jornais aventando frequentemente a hipótese até mesmo de um conflito civil, quanto pelo fato da agenda não incluir os árabes - que estão marginalizados nessa disputa dos grupos principais que se manifestam.  

Tal situação evidencia uma animosidade que não está nem perto de acabar. Ao tempo que os grupos hegemônicos de judeus lutam pelo poder, os palestinos aumentam a pressão por sua liberdade e pelo reconhecimento dos seus direitos, com saídas diplomáticas, mas também de resistência armada e de guerrilha. Confrontos estão em ritmo recorde para os últimos anos, e o número de mortos árabes e judeus está, em ambos os casos, em patamares altíssimos em relação aos últimos anos.

Seja lá quem sair vitorioso do embate sobre o judiciário israelense agora, o que já se sabe é que o lado que restar no poder vai herdar uma enorme bomba relógio que é a Ocupação Palestina. Mais de 5 milhões de árabes estão neste momento sob o governo israelense, e a maioria deles, sobretudo os jovens, não querem saber de passar a vida toda apenas assistindo os grupos de colonos batalharem sobre o direito de mandar em suas famílias.

As mudanças em Israel têm sido lineares e constantes. Os partidos que estão no poder sequer obtiveram resultados surpreendentes na última eleição, mas consolidaram votações expressivas que obtiveram tanto nesta quanto em todas as últimas eleições que foram realizadas no país. Já que a maioria dos árabes não pode votar nem influenciar a dinâmica dos partidos que os governa, e são mantidos formalmente longe do exercício democrático, a balança pende facilmente para direita e praticamente assegura a vitória do campo mais conservador em qualquer pleito.

Para onde quer que se olhe, a Ocupação é a origem do problema político, irradiando toxidade para todas as partes. Sem solução para ela, os líderes israelenses são sempre instáveis no poder e incapazes de proporcionar a estabilidade e a segurança que os eleitores pedem.  

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Israel realizou mais eleições nos últimos 8 anos que quase todos os países, e nenhum governo parou de pé. Este também não deverá parar. E nem o próximo. Simplesmente porque não pode haver estabilidade sobre um Apartheid.

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