Se quiser voltar a andar, Chile terá que enterrar de vez Pinochet e seu legado de violência neoliberal

"As fichas da democracia estão postas em Boric. As fichas da violência e da barbárie neofascistas estão postas em Kast", escreve o sociólogo Marcelo Zero

(Foto: Reuters)


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Por Marcelo Zero 

Michael Moffitt ouviu um chiado estranho, como de água caindo em um fio desencapado, e viu um intenso clarão branco.

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A violenta explosão, porém, não o feriu com gravidade. Ele conseguiu se arrastar para fora do carro, um Chevrolet branco, pela janela traseira, completamente estilhaçada, a tempo de ver sua mulher, Ronni Moffitt, saindo pela porta parcialmente arrancada do banco do carona. Pensando que a sua esposa, com quem se casara há apenas quatro meses, estava bem, sua atenção dirigiu-se ao motorista.  

Quem dirigia era um homem de 44 anos, forte, um tanto calvo e com um vasto bigode. Michael e sua esposa o conheciam bem, pois trabalhavam sob seu comando no Institute for Policy Studies(IPS) e no Transnational Institute(TNI), organizações dedicadas à luta pelos direitos civis. No entanto, ao sacudir o corpo do motorista, Michael notou algo estranho: as pernas de Orlando Letelier já não estavam mais lá.  

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Com a brutal força da explosão, que o atingira em cheio, as pernas do ex-ministro de Relações Exteriores e da Defesa do Governo Allende tinham sido arrancadas e estavam a cerca de 5 metros do carro, grotescamente estendidas no chão do Sheridan Circle, um entroncamento situado a menos de três quilômetros da Casa Branca.  

Já quase em coma, Orlando Letelier apenas movia a cabeça desordenadamente e emitia alguns sons ininteligíveis. Eram exatamente 09h35 min da manhã do dia 21 de setembro de 1976.  

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Levado às pressas para um hospital, Letelier teve a sua morte pronunciada às 09h50min. Quarenta e cinco minutos depois, às 10h35min, a esposa de Michael também foi declarada morta. Um estilhaço da explosão havia perfurado a sua laringe e a sua carótida. Afogada em seu próprio sangue, Ronni Karper Moffitt tornou-se, quase precisamente 25 anos antes do 9/11, a primeira vítima norte-americana de um ato terrorista cometido no território dos EUA.  

A ousadia da DINA, a terrível polícia secreta de Pinochet, surpreendeu. Com efeito, o assassinato de Letelier, exilado em Washington desde 1974, com boas conexões com alguns políticos e autoridades dos EUA, e de Ronni Moffitt, uma cidadã norte-americana, mostrou a audácia de quem se julga inimputável.  

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Mostrou também o quanto Letelier incomodava a ditadura chilena. Fluente em inglês e com trânsito no Congresso, Orlando Letelier influenciava a opinião pública norte-americana e mundial. Já havia afirmado, em audiência no parlamento dos EUA, que a CIA havia participado do golpe chileno. Tinha conseguido também impedir a concessão de um empréstimo de US$ 60 milhões que o governo holandês havia prometido para Pinochet.

Mas talvez o que mais incomodasse fosse as suas análises sobre as contradições da ditadura e das teorias econômicas conservadoras.  

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Em 28 de agosto de 1976, três semanas antes de ser assassinado, Orlando Letelier publicou um artigo na prestigiada revista The Nation, que teve grande repercussão. Nesse artigo, intitulado The Chicago Boys in Chile: Economics Freedom’s Awfull Toll, (“Os Chicago Boys no Chile: as Horríveis Consequências da Liberdade Econômica”), Letelier mostrou ao mundo as consequências econômicas, sociais e políticas da “terapia de choque’ que Milton Friedman e seus discípulos tinham imposto ao povo chileno.    

Entre outras coisas, Orlando Letelier assinalou, nesse texto, que “se, em 1972, apenas após um ano do governo da Unidade Popular, a renda da classe média e dos trabalhadores no Chile representavam 62,9% do total, em 1974 essa parcela da renda nacional chilena caiu para 38,2%. No entanto, se, em 1972, a renda dos grupos empresariais foi de 37,1% do total, dois anos mais tarde ela ascendeu a 61,8%. Em pouco mais de dois anos, a ditadura anos saqueou as classes pobres e médias do país”.  

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Entretanto, o foco do artigo de Orlando Letelier não eram as dramáticas consequências da nova política econômica de Pinochet, mas sim a contradição entre o liberalismo econômico dos Chicago Boys e a brutal ditadura que fizera do Chile o primeiro experimento neoliberal, avant la lettre, do mundo.

Friedman, seus discípulos e a grande imprensa, inclusive a dos EUA, tentavam dissociar o experimento neoliberal, a “terapia de choque”, das draconianas condições políticas sob as quais essa experiência se desenvolvia.  

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Friedman dizia que não compartilhava do ideário político da ditadura, mas que condená-lo por ajudar a implementar um remédio econômico eficaz era a mesma coisa que condenar um médico por aplicar uma vacina salvadora na população chilena, “ameaçada por uma grave epidemia”. A sua solução para os problemas econômicos do Chile era, portanto, uma “solução técnica”, racional, que não tinha nenhuma relação política com a grotesca ditadura chilena. Era também, segundo ele, a “única solução possível” para os problemas econômicos do Chile e do mundo.

Pois bem, Orlando Letelier argumentava, no seu artigo seminal, exatamente o contrário.  Para ele, era evidente que “as políticas econômicas são introduzidas precisamente com a finalidade de alterar as estruturas sociais e impor um modelo político”. Assim, não se pode separar a política econômica dos seus requisitos e efeitos sociais e políticos.  

Letelier acusava duramente: “aqueles que impõem a ‘liberdade econômica’ sem limite algum também deveriam ser considerados responsáveis “se os requisitos e resultados de tal política são a repressão massiva, a fome, o desemprego e a permanência de um brutal estado policial”.  

O homem que viria a ser assassinado em três semanas concluía brilhantemente o seu artigo dizendo que o experimento liberal, ao contrário de ser asséptico e técnico, era extremamente violento e, não por acaso, concentrador:

La concentración de la riqueza no es un accidente, sino un imperativo; no es resultado marginal de una situación difícil, sino la base de un proyecto social; no es un fracaso económico, sino un requisito político.

Trinta e um anos mais tarde, Naomi Klein, jornalista e economista canadense, publicou um livro que também teve boa repercussão. Trata-se da obra “A Doutrina do Choque: A Ascensão do Capitalismo do Desastre”, que chegou entrar nas listas de best sellers em alguns países.  

Nessa obra, Naomi Klein argumenta que as políticas neoliberais e o modelo econômico a elas associado, que varreram o planeta de 1980 até a recente crise, se proliferaram devido ao uso deliberado da violência econômica, social, política e até física.

Para Naomi Klein, o neoliberalismo, ao contrário de ser uma “solução” adotada serenamente, tecnicamente, racionalmente, é, na realidade, algo imposto pela força dos desastres políticos ou naturais. Há, portanto, segundo ela, uma estreita relação entre neoliberalismo e violência. As políticas neoliberais são, ao mesmo tempo, consequências e causas de violências de toda sorte.

Portanto, estão certos aqueles que afirmam que o neoliberalismo é, na verdade, incompatível com a democracia. Sua tendência inexorável à concentração e à exclusão, conforme demonstra Piketty, entre outros, é violência que agride frontalmente os fundamentos econômicos e sociais das democracias.

Obviamente, o grande antecessor dessas pertinentes reflexões de Naomi Klein foi justamente Orlando Letelier.  A economista canadense, que até se surpreende com a falta de conhecimento relativa ao artigo de Orlando Letelier e à experiência dos Chicago Boys no Chile, reconhece, comovida, que:

Orlando Letelier foi o primeiro a articular a estreita conexão entre neoliberalismo e violência.

Assim, as pernas decepadas de Letelier talvez se constituam na mais apropriada metáfora dessa relação intrínseca entre neoliberalismo e violência, que arranca empregos, esperanças e sonhos de vastas populações do planeta.

O povo chileno teve também suas pernas decepadas por esse modelo que nunca foi realmente abandonado pelos governos progressistas que sucederam Pinochet. A violência política brutal cessou, mas a violência econômica e social permaneceu, com altos e baixos.  

A grande explosão social de 2019 no Chile foi a reposta desesperada a décadas de violência. À pior forma de violência, como Gandhi definia a pobreza. De fato, não há opressão maior que a opressão do desemprego, do salário de fome, da aposentadoria miserável, da ausência de oportunidades, da falta de esperança e sonhos.

Quando os filhos têm a perspectiva de terem vidas piores que a dos pais, algo fundamental se rompe nas democracias.  

É isso que está em jogo agora, nessas eleições chilenas. O Chile, se quiser superar a crise, voltar a andar, terá de enterrar de vez Pinochet e seu legado de violência neoliberal. As fichas da democracia, da real democracia, estão postas em Boric. As fichas da violência e da barbárie francamente neofascistas estão postas em Kast, o Bolsonaro chileno, o Pinochet redivivo.  

É uma aposta que o Chile precisa ganhar. É uma aposta que todos os países precisam ganhar.  Para voltar a andar, o povo chileno precisa colocar as pernas de Orlando Letelier.

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