Se 300 mil crianças fossem abusadas dentro de uma religião de matriz africana, o que aconteceria com os seus sacerdotes?



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De acordo com um relatório publicado por uma comissão independente, aproximadamente 300 mil crianças foram vítimas de abusos sexuais cometidos por sacerdotes católicos, entre 1950 e 2020. Os números se referem a Igreja da França e marcam um período de apenas 70 anos dessas ocorrências, numa instituição que é milenar e que durante séculos funcionou como estado, um braço de Deus armado de poder espiritual sobre a terra e tinha o Papa, o seu sumo pontífice, como um ser infalível. Não aceitando contraditas, questionamentos e, muito menos, outras ideias de religiosidade e de espiritual idade.

Com base nisso, podemos imaginar o que vem acontecendo há séculos dentro da instituição em todo o mundo, sem que tenha se tornado de conhecimento público. Como católico de formação e com anos de prática, aprendi que a igreja é una, santa, católica e apostólica, que foi fundada por Jesus Cristo e que seus sacerdotes são os sucessores dos apóstolos de Jesus. Aprendi ainda que o Papa é o sucessor de São Pedro e que a igreja pratica a fé cristã original transmitida pela sagrada tradição. Definições que não deveriam permitir desvios de car&aac ute;ter em seus sacerdotes. Isto, se eles não fossem seres humanos normais como todos os outros, apesar de sermos impingidos a enxergá-los como seres santificados e superiores espiritualmente.

A questão é que não há santidade em homens. Sejam eles padres, bispos, pastores, apóstolos, presbíteros, profetas ou qualquer outro título eclesial que conquistem ou atribuam a eles mesmos. O desejo sexual dos sacerdotes celibatários é um tabu que precisa ser quebrado e discutido pela sociedade. Principalmente, quando ele passa a representar um perigo real para os seus membros mais vulneráveis. As crianças. Há toda uma dinâmica de abuso de poder nesse processo, uma vez que esses sacerdotes exercem sobre elas e sobre todos os demais membros das comunidades que dirigem, uma autoridade quase inquestionáv el. O que faz com que elas se submetam a tais abusos por respeito a essa autoridade. Ainda que se sintam constrangidas em fazê-lo.

Todo ser humano tem ou já teve vontade de fazer sexo e de se relacionar afetivamente com alguém. Proibir o exercício desse desejo natural dos seres da espécie, seja por motivação religiosa ou filosófica, é condená-los a um tipo de opressão física e psicológica que resultará em alguma “transgressão” da regra imposta para satisfazer os seus instintos. No caso dos sacerdotes celibatários, infelizmente, tal transgressão é cometida contra aqueles que não podem oferecer muita resistência e cuja a palavra poderia ser desacreditada com mais facilidade. Curiosamen te, a sexualidade, principalmente quando ela foge dos padrões considerados “normais”, é apresentada pelas religiões cristãs como algo imoral e até diabólico. O que, de fato, pode ser assim considerado, quando representantes da santa igreja exercem a sua sexualidade reprimida, satisfazendo aos seus desejos sexuais com crianças e adolescentes sob a sua tutela religiosa.

Pedofilia ou abuso sexual? Qual a diferença nesse caso? A pedofilia é considerada uma patologia de ordem psicológica, enquanto que o abuso sexual é um crime tipificado no código penal. Especialistas dizem que um pedófilo, se tratado e acompanhado por um profissional da saúde mental, pode aprender a controlar os seus desejos, ainda que seja impossível curá-los. Ou seja, um pedófilo só se torna um criminoso, quando consuma o seu interesse sexual por crianças. Logo, não seria nenhum absurdo atribuir ao celibato obrigatório a origem de transtornos psicológicos dessa ordem na mente de muitos sacerdotes católicos envolvidos em crimes sexuais contra crianças e adolescentes. Sem descarta r, é claro, a perversão e o mau-caratismo inerente a outros tantos, e que é o única justificativa para os seus atos.

Mas eu quero entrar na questão racial presente, e, talvez, ignorada na problemática desse contexto, para fazer um questionamento e provocar uma reflexão. Se trezentas mil crianças fossem abusadas sexualmente dentro de uma religião de matriz africana, o que aconteceria com os seus sacerdotes? Se todo esse histórico de escândalos sexuais envolvendo cria nças e adolescentes pontuasse a história das religiões de matriz africana, será que o racismo estrutural da nossa sociedade permitiria que os seus cultos ainda existissem? Será que os seus sacerdotes teriam escapado de uma condenação exemplar? Será que uma possível patologia seria levada em consideração? Vale lembrar, por exemplo, que no Brasil houve uma repressão policial às religiões de matriz afro-brasileiras no período do Estado Novo (1937 a 1945), onde as casas e os terreiros de umbanda e candomblé eram invadidos pela polícia e tinham seus objetos de culto apreendidos.


Os sacerdotes dessas religiões eram presos acusados de infração aos artigos 157 e 158 do código penal de 1890, que se referiam à prática da magia, do espiritismo e ao exercício do curandeirismo. Racismo religioso estruturado e legitimado pelos ideais colonialistas que ainda inspiram a mentalidade de boa parte da nossa elite burguesa e que se estenderam às camadas mais populares, através da doutrinação cristã europeia. Alguém conseguiria imaginar esses abusos sexuais contra menores sendo tolerados por séculos, se eles fossem cometidos por sacerdotes de cultos africanos, histórica e tendenciosam ente demonizados por uma estrutura social conservadora, tradicionalista, cristã e de “bem”? De certo, haveriam protestos mais intensos, com tentativas de agressão física, depredação de seus lugares de culto e outras formas de justiça feita com as próprias mãos.

Isso nos ajuda a entender que o privilégio eurocêntrico vai muito além de uma foto apresentando os novos trainees do Itaú. Ele pontua toda a nossa estrutura. E a religião sempre foi uma peça chave nesse sistema. É um eterno “habeas corpus” social impetrado pelos criadores desse modelo de sociedade, em benefício dos seus descendentes raciais diretos. Enquanto o demônio continuar a ser o outro e as outras religiões, a Igreja permanecerá de pé sob a narrativa de que as portas do inferno nunca prevalecerão sobre ela. Apesar de que, em muitos momentos da história da humanidade, o comportamento d e seus sacerdotes nos fez pensar que a entrada para ambos os lugares se dava pela mesma porta. Que o querido Papa Francisco tenha força e apoio suficientes para trocar as fechaduras das portas da Igreja que ele hoje comanda.

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