Saúde: rumos da transição

"A saúde é um setor em que se vem comprovando o poder destrutivo do governo de Jair Bolsonaro", escreve Paulo Capel Narvai

Lideranças do PT fizeram reunião com o relator do Orçamento. Marcelo Castro já se mostrou favorável à PEC
Lideranças do PT fizeram reunião com o relator do Orçamento. Marcelo Castro já se mostrou favorável à PEC (Foto: Roque de Sá/Agência Senado)


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Por Paulo Capel Narvai

(Publicado no site A Terra é Redonda)

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Este não será um governo ultraliberal, mas será um governo neoliberal. Tenho respondido assim a quem me pergunta sobre o governo Lula 2023-26, o Lula-3, como a ele muitos têm se referido. Em conversas em redes sociais, repeti essa afirmação em algumas ocasiões, sendo recebido ora com indiferença, ora com conselhos para ser menos “pessimista”, ora com rejeição indignada à afirmação: “mas o governo ainda nem começou”, responderam.

Não há, porém, na minha constatação nenhuma novidade e nem se trata de alguma acusação a Lula ou algo assim.

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Um amigo argentino, sabendo da minha participação na campanha de Lula, me perguntou “Luego contame cómo se preparan para volver”. De uma amiga chilena e um amigo colombiano vieram praticamente a mesma pergunta direta: “¿Y en la salud, qué van a hacer?”

Todos querem saber sobre o Lula-3.

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Fiquei de conversar, na próxima semana, com jornalistas do Guilhotina, o podcast do Le Monde Diplomatique, para falar sobre o meu livro SUS: uma reforma revolucionária – para defender a vida (Autêntica), lançado em abril. Mas já me avisaram que não se aterão ao livro e me perguntarão também “sobre o futuro governo”.

O Lula-3 já é um governo se fazendo para assumir formalmente as funções de chefia do Executivo e do Estado brasileiro. O “governo se fazendo”, construindo sua viabilidade política, começou bem antes das eleições de outubro, lá atrás, quando se firmou a aliança política que resultaria na frente “Juntos Pelo Brasil”. Ali se decidiu, tacitamente, que o governo não seria ultraliberal, mas neoliberal, pois esta era uma exigência derivada da viabilidade política da aliança política, e condição reconhecida pelas organizações partidárias que a constituíram, de que o programa da Frente, necessário para a derrota político-eleitoral da extrema-direita, aninhada no governo de Bolsonaro, não poderia ir além do neoliberalismo. O programa socialista, sonhado por setores do PT e por aliados como o PSOL e outros, ficaria para outra conjuntura política, em outro período histórico. Agora, não.

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A aliança costurada por Lula, Geraldo Alckmin e lideranças políticas próximas a ambos foi celebrada amplamente. O resultado eleitoral revelou o acerto da decisão do início do ano. Mas, agora, é preciso governar com todos que “estão no barco”. É apenas disso que se trata. Ultraliberal não, neoliberal. O problema para Lula será manter essa vírgula exatamente na posição em que se encontra, pois não lhe faltarão pressões para alterar a frase para “ultraliberal, não neoliberal”, conforme recados que “o mercado” não cessa de lhe enviar. A ver o que a história nos dirá da posição da vírgula, embora até as pedras saibam que a vida não é gramática, mas, frequentemente, dramática.

Não se trata, portanto, nem de “pessimismo”, nem de críticas a um “governo que nem começou”.

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Com o discurso da noite de 30 de outubro, feito logo após o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) ter reconhecido sua vitória sobre Jair Bolsonaro, com 60,3 milhões de votos (50,9%), contra 58,2 milhões de votos (49,1%) obtidos por seu oponente, Lula se pôs imediatamente à frente do governo da República que, politicamente, começava ali. Ainda que jurídica e administrativamente o Lula-3 comece apenas após a posse, em 1/1/2023, em termos políticos Lula já governa o Brasil, conforme amplo reconhecimento mundial. As escaramuças em rodovias e as manifestações patéticas na frente de instalações militares, cometidas por acólitos de Jair Bolsonaro, apenas confirmam que embora “a caneta” não tenha ainda mudado de mãos, Jair Bolsonaro manda menos a cada dia, conforme as regras das transições de governos em Estados democráticos.

Mas que não haja ilusões sobre isso: Jair Bolsonaro manda menos a cada dia, mas consolidou sua liderança política sobre um vasto contingente de eleitores, e sobre cidadãos que, mais do que eleitores, são muito pouco apensos a direitos civis como o de votar e ser votado, apesar de apreciarem palavras como “livre” e “liberdade” – que, em suas bocas, parecem sempre fora de lugar. É verdade que alguns milhões de votos em Jair Bolsonaro decorreram de dominação política, derivada de práticas bem conhecidas de pressão econômica sobre eleitores postos no “cabresto” e do uso descarado de todo tipo de benesses que o controle sobre nomeações para cargos de confiança e sobre a aplicação de dinheiro público proporciona a quem está no governo.

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Não obstante, a expressiva votação e as muitas manifestações, desde a derrota eleitoral, de milhões de pessoas em favor de Bolsonaro, a despeito do desastre que foi seu governo, permite antever muitas dificuldades para o governo Lula-3, pois são evidentes tanto a ignorância quanto o desprezo de muitos, milhões em todo o Brasil, aos avanços da democracia representativa e ao Estado de Direito que conquistamos em 1988.

Um fato que sinaliza positivamente no enfrentamento dessas dificuldades é o processo pelo qual Lula está compondo seu governo e colocando-se a par dos problemas que enfrentará. A Comissão da Transição (CT) e a constituição de vários grupos setoriais que a estão subsidiando, com diagnósticos por área de atuação governamental, com os quais se estão produzindo mapas de situação e identificando medidas a tomar nos primeiros 100 dias de governo, ou imediatamente após a posse, vem a um só tempo comprovando o desastre do governo Bolsonaro e indicando medidas a tomar para começar a reparar danos. E isto vem sendo feito com ampla participação do que há de politicamente organizado no campo democrático brasileiro.

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A saúde é um setor em que se vem comprovando o poder destrutivo do governo de Jair Bolsonaro. Não é que seja novidade, ou que os fatos, gravíssimos, não fossem conhecidos. Mas o grupo-saúde da CT vem tendo, agora, o respaldo de instituições e órgãos do próprio governo federal, como o Tribunal de Contas da União (TCU) e áreas técnicas do Ministério da Saúde, comprovando com dados e documentos oficiais o desastre tantas vezes anunciado, por vários meios, como eu mesmo divulguei aqui no site A Terra é Redonda. Na saúde, a situação emblemática, e das mais graves do setor, diz respeito ao Programa Nacional de Imunizações (PNI), duramente atingido pelo negacionismo e antivacinismo ativos, praticados diariamente como manipulação ideológica a partir dos mais altos escalões do governo Bolsonaro, incessantemente desde que assumiu o Palácio do Planalto, apenas para açular a massa bolsonarista.

Criado em 18 de setembro de 1973, com a participação de sanitaristas como Ciro de Quadros, que tinham se envolvido com a campanha de erradicação da varíola no Brasil, no bojo dos esforços para avançar no controle da poliomielite e preocupados com o descontrole da epidemia de meningite, que a ditadura civil-militar tentou ocultar, o PNI é um programa do governo federal brasileiro que foi formulado e implementado como política pública, 15 anos antes da criação do SUS, que ocorreria em 1988.

Os dados que agora vêm a público, sobre a falta de controle sobre a cobertura vacinal, que despencou para níveis inusitados em todo o Brasil, depois de ostentarem padrões modelares em nível mundial, contidos em relatórios do TCU, comprovam o crime de lesa humanidade cometido pelo governo brasileiro. Supondo estar atacando o SUS, objeto de ódio explícito de Bolsonaro e membros da sua família, o presidente da República atuou, de modo estarrecedor, a partir do Palácio do Planalto, contra seu próprio povo.

Várias outras áreas da saúde, porém, como a de saúde mental, foram muito impactadas pelas ações destrutivas deliberadamente impulsionadas desde os altos escalões do governo e do Ministério da Saúde.

No último dia 9 de novembro a Frente Pela Vida, constituída em 2020, e articulada sob a liderança da Abrasco, a Associação Brasileira de Saúde Coletiva, reunindo mais de 550 entidades e movimentos sociais, foi recebida pelo grupo-saúde da Comissão de Transição, em reunião coordenada pelo ex-ministro da Saúde Arthur Chioro. Dentre outros temas, o grave problema do subfinanciamento do SUS foi enfatizado.

De acordo com a ABrES, a Associação Brasileira de Economia da Saúde, entidade que integra a Frente Pela Vida, “desde 2018, já perdemos R$ 37 bilhões, e se nada for feito, perderemos mais R$ 23 bilhões”. Sem financiamento adequado, o SUS seguirá sob risco e, com ele, a saúde da população, que com a pandemia de covid-19 passou a ter uma percepção positiva do SUS, como uma instituição do Estado que, apesar dos seus muitos problemas, existe e funciona para atender o interesse público na saúde. Na pandemia, cumpriu sua missão, apesar dos muitos ataques que partiram justamente de onde se esperava que viesse a defesa do sistema. Nosso sistema universal de saúde é, hoje, mais necessário do que nunca.

A Frente Pela Vida, cujo slogan (“Não deixaremos que esqueçam: apuração imediata e responsabilização dos crimes do governo federal na pandemia de covid-19 no Brasil”) não deixa dúvida quanto aos seus propósitos, promete seguir atuante em 2023 e nos próximos anos. Melhor para o Brasil, pois uma das suas contribuições mais relevantes foi ter, desde a sua constituição, articulado diferentes projetos de saúde para o Brasil, formulados no campo democrático em diferentes instâncias da sociedade, como entidades de saúde, movimentos sociais, núcleos universitários e partidos políticos e dado expressão política a esse conjunto. A Frente Pela Vida está sendo de valor inestimável para o governo Lula-3, cujo grupo de saúde segue ouvindo outros segmentos sociais.

Em duas cartas que escrevi a Oswaldo Cruz, e deixei públicas aqui no site, atualizei o mestre sobre os descaminhos do SUS e da saúde pública no país. Na primeira Carta a Oswaldo Cruz, a de 26/10/2020, escrita no auge da pandemia, denunciei o desdém com as vacinas e a vacinação. Na segunda carta, de 3/08/2021, expressei minha indignação e por que não dizer, repugnância, ao constatar que o presidente da República havia outorgado a Medalha do Mérito Oswaldo Cruz, na categoria ouro, à própria esposa, como “reconhecimento pela atuação destacada no campo das atividades científicas, educacionais, culturais e administrativas pelos resultados benéficos à saúde de brasileiros”. Foram também agraciados com a Medalha do Doutor Oswaldo, conspurcando-a vergonhosamente, os à época ministros Milton Ribeiro (Educação), Fabio Faria (Comunicações), Gilson Machado (Turismo), Carlos Alberto França (Relações Exteriores), João Roma (Cidadania), Luiz Eduardo Ramos (Casa Civil), Paulo Guedes (Economia), Rogério Marinho (Desenvolvimento Regional), Tarcísio Freitas (Infraestrutura), Tereza Cristina (Agricultura, Pecuária e Abastecimento) e Walter Braga Netto (Defesa).

Política é também – e muito – ações no mundo simbólico. Pelo simbolismo implicado nessas condecorações vergonhosas, peço permissão à Comissão de Transição para indicar que essas outorgas sejam imediatamente revogadas, já no dia 2/1/2023, em que se comemora o Dia do Sanitarista, em honra à memória de Oswaldo Cruz e em respeito aos mais de 690 mil mortos pela pandemia em nosso país.

P.S.: A esposa e vários ministros de Bolsonaro foram agraciados com a Medalha do Mérito Oswaldo Cruz, conspurcando-a, e insultando a memória do médico. No Dia do Sanitarista, 2 de janeiro, deveria ser publicado ato de Lula revogando essas outorgas.

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