Santo hacker

"A questão central do país hoje, além do vírus, é saber se as tais mensagens que o bendito hacker capturou dos telefones institucionais da –na expressão posta pelo colunista do Globo– “gangue de Curitiba” podem ser usadas somente para a defesa dos que foram perseguidos pelo grupo, ou também para colocar a gangue no banco dos réus", escreve o jurista Antonio Carlos de Almeida, o Kakay

(Foto: Reprodução)


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Quando a solidão passa a ser a mais frequente companhia, por causa do isolamento social, e o programa mais esperado é acompanhar algum julgamento no Judiciário, é um sinal claro de que os tempos são estranhos e preocupantes. A conversa sempre volta à incompetência do governo, que, num negacionismo criminoso, optou por comprar cloroquina e não a vacina, ou a absoluta inércia dos poderes constituídos no enfrentamento do caos.

A torcida não é pela volta da normalidade da vida que nos roubaram, mas para ver se o número de mortos pelo vírus diminuiu naquele dia. Nós, que tínhamos na excelência do SUS a capacidade de vacinar milhões de pessoas rapidamente, hoje estamos torcendo para conseguir vacinar a população até o começo do próximo ano.

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Na ausência e na irresponsabilidade criminosa do governo no programa de vacinação, algumas empresas já começam a fazer valer o tristemente famoso jeitinho brasileiro e a burla vergonhosa faz com que algumas pessoas sejam vacinadas clandestinamente. Normalmente, esses são os que bradam pelas ruas que o vírus não existe, que a doença não é grave e que só estão se vacinando porque querem mostrar que fazem parte de uma elite acostumada a arrotar os privilégios que julgam serem naturais. A máscara, que salva vidas, serve também para que a gente não tenha que ver a cara desse bando de canalhas. Escondo-me em Torquato Neto, no Poema do aviso final:

“ É preciso que haja alguma coisa
alimentando o meu povo;
uma vontade
uma certeza
uma qualquer esperança.
É preciso que alguma coisa atraía
a vida
ou tudo será posto de lado
e na procura da vida
a morte vira na frente
e abrirá caminhos.
É preciso que haja algum respeito,
ao menos um esboço
ou a dignidade humana se afirmará a machadadas.”

A questão central do país hoje, além do vírus, é saber se as tais mensagens que o bendito hacker capturou dos telefones institucionais da –na expressão posta pelo colunista do Globo– “gangue de Curitiba” podem ser usadas somente para a defesa dos que foram perseguidos pelo grupo, ou também para colocar a gangue no banco dos réus.

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O questionamento é de alta indagação jurídica e por isto é debatido, pasmem, nos táxis, nos programas de auditório e em mesas de bar. Ou seja, as conversas do bando, chefiado por um ex-juiz que se julgava semideus, já são do conhecimento de todos e ninguém mais ousa negar a veracidade delas. Até porque já há um procurador que expressamente afirma serem verdadeiras as mensagens, embora diga que aquele espaço no Telegram era parecido com conversas de botequim. O que o Judiciário fará com as citadas mensagens é o assunto da moda.

O próprio ministro e presidente do Superior Tribunal de Justiça requereu ao procurador-geral da República que investigue os membros da força-tarefa flagrados nas mensagens combinando investigar ilegalmente ministros do Tribunal. Assim sendo, o ministro Humberto Martins considerou as mensagens suficientes para determinar a abertura de uma investigação para apurar as condutas penais, bem como administrativas, e até de desvio ético dos procuradores. E o procurador-geral da República já encaminhou o pedido de investigação da gangue de Curitiba para a Corregedoria do Ministério Público Federal. É hora dos demais membros do Ministério Público mostrarem que não coadunam com os métodos obscuros e ilegais desse grupo.

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Por sinal, em importantíssima manifestação pública, 4 ilustres ex-presidentes da Associação Nacional dos Procuradores da República condenaram expressamente as trocas de mensagens entre os membros da Força Tarefa de Curitiba e o juiz Sérgio Moro. Ressaltaram que as mensagens sugerem conduta incompatível com a missão constitucional do Ministério Público, com desprezo às garantias constitucionais dos acusados e em desrespeito às normas que regem a cooperação internacional. Os ex-presidentes sugerem ainda que “sejam identificadas as ilicitudes praticadas no exercício do ofício e seus responsáveis submetidos ao devido processo legal”. É a comprovação cabal de que boa parte dos Procuradores, eu sempre repito, é séria, proba e não compactua com os abusos.

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No entanto, não espere coerência dos membros da gangue que sempre se guiaram por um projeto de poder. Indigentes intelectuais e morais tinham na estrutura de marketing sua sustentação. Para tanto, contavam com o apoio estratégico de parte da grande mídia e dos jornalistas de algibeira sempre ávidos para serem usados. E, claro, ao instrumentalizarem o Poder Judiciário, usavam, sem pudor, as mais diversas estratégias para dar aparência de legalidade aos abusos. Muita gente séria foi enganada por uma história montada sem nenhum escrúpulo ou compromisso com a verdade. Utilizando o mote de combater a corrupção a qualquer custo, corromperam o sistema de justiça para chegarem ao poder. Remeto-me a Sophia de Mello Breyner Andresen, no poema O Velho Abutre:

“O velho abutre é sábio
e alisa as suas penas
A podridão lhe agrada
e seus discursos
têm o dom de tornar
as almas mais pequenas.”

A gangue pregava que a prova ilícita deveria ser usada sim, pois os fins justificariam os meios. São os mesmos que admitiam que a prisão servia, mesmo sem os pressupostos legais, para o fim específico de forçar o cidadão a delatar. Valiam-se da tortura de maneira institucionalizada, ao se considerar que prisão injusta pode ser uma forma de tortura. Contavam com a exposição midiática para quebrar a moral dos investigados e os forçavam a delatar. Estupraram o instituto da delação. Montaram, como fica claro nas mensagens, uma organização à margem da lei, composta por juiz, procuradores e advogados para lucrar com uma indústria de delação. As recentes revelações parecem mostrar que a delação era empregada para extorquir, para ameaçar, para proteger.

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E dá náusea constatar nas mensagens que faziam tudo isso debochando e se divertindo com a desgraça alheia. É deprimente ver a absoluta falta de qualquer escrúpulo do grupo. A maneira desumana com que tratavam as pessoas, até mesmo em episódios trágicos como a morte do neto do ex-presidente, nos dá a dimensão da miséria humana que caracteriza esses personagens. Não podemos deixar que o desprezo que nutrimos por eles venha obnubilar nossos olhos a ponto de querermos negar a eles os direitos que eles negaram a todos.

É claro que, se fôssemos usar a mesma régua que o bando usava para se impor, ou se fôssemos exigir coerência deles, a essa altura esses procuradores já deveriam ter pedido a prisão deles mesmos e do juiz que os chefiava, e o juiz já teria prendido a todos. E ainda com direito a uma superexposição midiática no horário nobre. Repito o que já virou um mantra: vamos dar a eles o devido processo legal, o pleno direito de defesa, um julgamento justo e imparcial e até a presunção constitucional da inocência, garantindo que só irão para o cárcere após o trânsito em julgado da sentença.

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Em tempos em que cumprir a Constituição passou a ser um ato revolucionário, vamos garantir a eles todos os direitos constitucionais. Essa falta de ar que sufoca o cidadão acometido pela praga do vírus, agravada pela inação criminosa do governo, que é filho direto do trabalho político da gangue em questão, não deve nos levar a perder a lucidez.

A angústia e o medo que imobilizam a todos os infectados já produz sérios efeitos colaterais aos que sobrevivem à doença. Há uma turva nuvem que parece cegar a todos e um grito seco não gritado, preso na garganta. No meio desse círculo invisível que nos oprime, nós temos que resistir aos métodos de barbárie que sempre combatemos. É, de certa maneira, a humanidade sendo posta à prova. Só venceremos se enfrentarmos os abusos, mesmo em tempos de ar rarefeito, com as armas da normalidade democrática.

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As mensagens, isto é unânime, podem e devem ser manejadas na defesa técnica dos que foram objeto das ilegalidades. Toda a jurisprudência é nesse sentido. Assim como não é mais possível discutir se o juiz foi parcial, ou se a gangue por ele coordenada cometeu inúmeros ilícitos e crimes. Isso hoje é de uma obviedade chapada. A discussão que se faz necessária é se é possível utilizar as mensagens, obtidas sem autorização judicial, como prova em um processo criminal contra os envolvidos. Para isso serve o Estado Democrático de Direito.

Mesmo sendo indiscutível que a gangue cometeu diversos excessos, o cumprimento a Constituição se impõe. Os membros do bando pregavam o uso da prova ilícita para acusar e abusaram das provas obtidas por meios ilícitos, inclusive na obtenção de documentos no exterior sem obedecer aos tratados internacionais, mas não devemos nos misturar com eles.

A questão central é se as mensagens capturadas em telefones institucionais, trocadas entre agentes públicos e versando sobre processos públicos, devem ter o mesmo tratamento constitucional de proteção à intimidade do que as mensagens privadas. Todos têm o direito constitucional à intimidade e a não verem ser usadas contra si provas obtidas por meios ilegais. O alcance da norma constitucional é que desafia o Poder Judiciário agora.

O sistema de justiça, que foi corrompido pela gangue e por seu chefe, tem que mostrar que o direito vale para todos. A ponderação entre o uso das funções públicas como escudo para cometer crimes e abusos e a extensão do direito de proibição ao uso da prova ilícita está a provocar o próprio sistema que foi conspurcado pelo bando. Foi preciso um ato ilícito de um hacker para desnudar o poderio criminoso da gangue de Curitiba. Resta puni-los. Lembrando o velho Bertolt Brecht:

“Pelo que esperam?
Que os surdos se deixem convencer
E que os insaciáveis
Devolvam-lhes algo?
Os lobos os alimentarão,
Em vez de devora-los?
Por amizade
Os tigres convidarão
A lhes arrancarem os dentes!
É por isso que esperam!”

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