SAF – imperialismo, neoliberalismo e o nosso sentimento de viralatismo
O efeito Bragantino não vai tardar, a realidade de que o clube será apenas mais um ativo na mão de empresários plenipotenciários
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O futebol, como tudo no capitalismo é um negócio, mas é também um patrimônio cultural imaterial coletivo, uma paixão popular que une sujeitos de diferentes classes sociais. Clubes de futebol nunca primaram por serem espaços coletivos de ampla democracia interna, muito pelo contrário, quase todos, com raras exceções, fundados por pequenas elites, sempre tiveram seus espaços de decisão interna restritos aos sócios-proprietários, membros das elites, ou, ao menos, das classes médias.
O fato é que os clubes ultrapassam e muito a fronteira de seus sócios-proprietários, são mantidos direta e indiretamente por contingentes de milhões de torcedores que, mesmo não se associando, acabam por financiar e financeirizar os clubes adquirindo as centenas de produtos derivados do futebol, ou, simplesmente, valorizando seu capital fictício, sua imagem, mensurável economicamente nesta era de capital virtual.
O futebol não foge ao fato de o Brasil ser um país capitalista periférico e dependente, com todas as implicações econômicas e intelectuais disto. Economia dependente, ou colonial, é aquela cuja acumulação primitiva se faz alhures. Isto pode se dar através dos dividendos da Petrobras na bolsa de valores de Nova Iorque, ou por clubes de futebol sendo alienados, vendidos a exóticos empresários estrangeiros do capitalismo cassino.
Há movimentos de torcedores de esquerda no Brasil todo, entre os objetivos destes torcedores está a democratização dos clubes, a ampliação dos votos para todos os tipos torcedores, incluindo os torcedores de clubes que vivem em outros estados e aos sócios torcedores, ampliando a participação popular e o controle da massa sobre os clubes de futebol. O objetivo precípuo é que clubes, que só são enormes exatamente por seu maior patrimônio, a torcida, possam ter a participação eleitoral o mais massiva possível, para serem geridos o mais democraticamente possível. Assim poderiam surgir diretorias menos elitistas e mais ligadas às massas de torcedores, que são a razão da grandeza e da força destes clubes.
De uma hora para outra vi membros de movimentos de torcedores de esquerda e antifascistas passarem a defender a SAF, como uma espécie de “tábua de salvação”, que traria mais igualdade e competitividade ao futebol brasileiro. Uma coisa aprendi na minha experiência política, as motivações sentimentais obliteram o raciocínio, e o que parece, por vezes, muito racional e elementar é, ao fim e ao cabo, apenas senso comum travestido de racionalidade.
As SAFs são novidade aqui, por estas plagas, mas já são a velhitude na Europa ou nos EUA. Lá, longe de solucionarem problemas de quaisquer clubes, tem sido objeto de controvérsia e, muitas vezes de oposição ruidosa a novos proprietários que colocam o lucro acima de qualquer objetivo esportivo e levaram grandes clubes, como o Manchester United, a vegetarem esportivamente. Na verdade, casos de sucesso como Manchester City, apenas ocultam as dezenas ou centenas de apropriações de clubes que são apenas investimentos e que visam os lucros dos seus proprietários, pouco importando a esfera esportiva. Só para exemplificar, o Genoa, quarto clube italiano em títulos, foi rebaixado na administração 777, e o Valladolid, de Ronaldinho Fenômeno, amarga o mesmo destino na Espanha.
No Brasil o sentimento de viralatismo é uma praga permanente. Junte-se a isto algumas crenças que são só crenças, iguais à mula sem cabeça, à iara, ao saci pererê, do tipo: CEOs são seres extremamente competentes e os capitalistas são os mais eficazes em qualquer gestão. Se assim fosse, não seria necessário todo um processo de reestatização na Europa por conta da falência de vários serviços, antes públicos, que se tornaram tremendamente deficitários e insatisfatórios quando privatizados, e o histórico recente de privatizações no Brasil. A crença de torcedores de que os neocapitalistas, que estão se tornando donos dos pés de obra de seus clubes, serão a salvação do futebol nacional é a mesma crença que movia trabalhadores da Vale a ficarem felizes ao adquirirem ações da empresa quando da privatização. Depois tiveram que vender estas ações para comer e perderam seus empregos.
Não existe empresário altruísta e nem almoço grátis. É óbvio que as empresas de telecomunicação, da Globo à ESPN, venderão a ideia de que as SAFs são geniais, porque estão ideologicamente comprometidas, são empresas capitalistas de venda e produção de ideias dóceis ao sistema. A ideia de que o capitalismo funciona sem nenhuma intervenção e que os empresários são competentes é uma crença que tem que ser alardeada noite e dia. Walter Benjamin nos diria que o capitalismo é a grande crença, a grande religião.
Não, antes que me acusem de simplismo, eu sei que o futebol é um negócio, mas também sei que a SAF é o contrário da democratização, controle e gestão democrática destes entes coletivos por suas torcidas. Como na privatização, o primeiro momento é de euforia, e de ilusão de que alguns clubes, outrora grandes, e alijados de competir em pé de igualdade com Flamengo, Palmeiras e Atlético MG (os clubes ora hegemônicos), num passe de mágica, lutarão em pé de igualdade porque empresários estrangeiros bonzinhos vão injetar bilhões e bilhões de dólares aqui.
O Capital não tem alma e nem coração. Por trás desta investida fortíssima na aquisição dos clubes brasileiros está apenas e tão somente o desejo de lucrar. O desespero de torcedores por verem seus clubes à deriva desafia a razão, as pessoas desaprenderam até a fazer contas. A 777 (que rebaixou o Gênova) promete nos próximos anos investir 700 milhões no futebol do Vasco (entre contratações, salários, centro de treinamento, etc). Bem, o Vasco na primeira divisão recebe de 200 milhões a 350 milhões de receita por ano! O problema do Vasco não era a falta de receita, mas o endividamento, com um crescimento vegetativo da dívida beirando os 100 milhões, o clube não conseguia se organizar financeiramente para pagar seus compromissos e montar grandes times. Mas ficam algumas perguntas bem idiotas, a 777 que ficará com cerca de 90% da receita do Vasco irá investir 700 milhões em 3 anos e arrecadará de 600 milhões a 750 milhões? Este negócio é tão bom assim? Para quem, para o Vasco, ou para 777?
Colocando em miúdos, imaginem se eu vendo um negócio que tem um faturamento anual de 250 milhões, sem receber nada, de porteira fechada, porque receberei 700 milhões em 3 anos de investimento no mesmo negócio que vai gerar 750 milhões... Parece a privatização tucana. Os ativos do próprio clube vão financiar o “investimento externo”. Mas vocês gritarão, alto, pare lá, mas eles também pagarão 700 milhões de dívidas do clube, assim o investimento “pode” chegar até 1 bilhão e 400 milhões durante a validade do contrato. Bem, senhores, também não é necessário ser gênio, e nem recorrer à SAF, na alavancagem das dívidas de Palmeiras e Atlético MG (bem recentemente), se você obtém recursos para refinanciar e alongar a dívida, 700 milhões de dívidas, que hoje estrangulam o clube com crescimento vegetativo de 100 milhões ao ano, podem ser renegociados e serem pagos com o próprio faturamento do clube.
Então, seria mesmo a SAF a “única saída”? Lembrando que a renegociação dos direitos de TV devem render a cada clube grande um mínimo de 200 milhões de luvas, já no próximo ano. Juntando faturamento, luvas de TV e aumento dos valores na nova liga, em 5 anos a 777 já terá obtido de volta todo seu investimento no Vasco, com lucro, sem de verdade fazer força, apenas adiantamentos.
Para que não digam que sou um pessimista inveterado, Bragantino e Botafogo são “SAFs” mais consolidadas. Depois de uma febre de “Bragantino, o novo clube grande”, se viu que o investimento inicial da Red Bull era investimento inicial, e que, agora, o time precisa vender ativos para se autofinanciar, que é um depósito de pés de obra em território tupiniquim, para vendas internacionais, e tem que se autogerir com o que gerar de receita. A propalada propaganda de que Jontex faria o Botafogo disputar, em pé de igualdade com o Flamengo, os campeonatos, tem se dissipado em contratações de quarta ou quinta prateleira europeia e declarações que, se fossem de um diretor amador gerariam furor, de que o Flamengo tem realmente que receber valores maiores que o Botafogo (a marca vale mais) e de que não dá para igualar o investimento. Mas, afinal, então, para que serve a SAF?
Dirão que a SAF serviu para resgatar clubes ultraendividados (se é só por isto mesmo, seria fundamental a SAF?), que de outra forma não poderiam arrecadar recursos e se autogerir. Perdoem, tenho minhas dúvidas, se com os novos contratos do futebol, que provocaram este frenesi rumo ao Brasil, deste bando de empresas e empresários exóticos, não seria possível, com o mínimo de organização, os clubes arrumarem recursos prévios para organizarem as suas finanças e manterem sua autonomia?
Num primeiro momento haverá este furor de louvor às SAFs, lembro a matéria idiota, de um jornalista esportivo, que comparava a votação da entrega de todo o patrimônio do Botafogo a um empresário estadounidense à queda da Bastilha. Fico pensando, cá com meus botões, que tipo de mentalidade colonizada e vira-lata faria uma comparação destas, é bom lembrar que na Revolução Francesa, o Terceiro Estado, o povo (a burguesia não fez a revolução sozinha, ainda que depois tenha virado as armas contra seus antigos aliados) assaltou o céu e cortou cabeças de nobres e igreja, no caso do Botafogo, a torcida apenas entregou todo patrimônio e o destino do clube a um bizarro empresário trumpista.
A empolgação inicial é óbvia, há um sentimento (comparável ao da privatização nos governos tucanos) de que o céu é o limite e que tudo dará certo. Em breve Botafogo, Vasco, Cruzeiro e Bahia contarão com Messi, Neymar e Cristiano Ronaldo em seus elencos e os empresários estrangeiros, seres altruístas e solidários, derramarão rios de dinheiro para que os torcedores vibrem com coleções de taças libertadores e goleiem o Real Madrid na final do mundial por 8 x 0. O efeito Bragantino não vai tardar, a realidade de que o clube será apenas mais um ativo na mão de empresários plenipotenciários.
Quando vier a ressaca as torcidas se darão conta que, ao contrário de antes, nenhum tipo de protesto ou insatisfação mudará nada, porque seus clubes agora são apenas ativos financeiros nas mãos de um punhado de empresários do capitalismo cassino. É mais do mesmo do sentimento viralatista colonial.
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