Russofobia

"A russofobia é uma necessidade para os que repelem o advento da ordem mundial", escreve Manuel Domingos Neto

Presidente russo, Vladimir Putin
Presidente russo, Vladimir Putin (Foto: Sputnik/Ramil Sitdikov/Kremlin via REUTERS)


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A russofobia é uma necessidade para os que repelem o advento da ordem mundial. A reflexão sobre os laços íntimos entre a guerra e a religião ajuda a compreender este fenômeno. Aqui, retomo ideias que escrevi faz algum tempo. 

Começo relembrando formulações de Benedict Anderson sobre o fundamento religioso da nação, entidade que justifica ou promove a guerra entre civilizados.  A preocupação do nacionalismo com a imortalidade é ilustrada por Anderson com emblemas marcantes da cultura moderna, os cenotáfios, túmulos sem restos mortais, mas carregados de remessas ao passado longínquo e à eternidade:

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“Se os Estados-nação são amplamente reconhecidos como ‘novos’ e ‘históricos’, as nações às quais dão expressão política surgem sempre como expressão de um passado imemorial e, o que é mais importante, movem-se gradual e imperceptivelmente em direção a um futuro sem limites.” (Comunidades Imaginadas, reflexões sobre a origem e a expansão do nacionalismo, Lisboa, Edições 70, 2005, p. 33). 

A nação detém inequívoco sentido de continuidade e isso é demonstrado por sua ligação com o encarregado de sustentá-la pelas armas. Sendo o extermínio de vidas ato de extrema gravidade, o moderno empresta-lhe o caráter de ato sagrado. 

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Homens “primitivos” cantam e dançam invocando divindades antes de usar armas. Na mitologia, deuses e heróis reproduzem o comportamento dos combatentes. Nas diversas religiões o extermínio de vidas é apresentado como desígnio de Deus. O combatente contemporâneo, como o seu ancestral, se veste de mandatário do “bem” em luta sagrada contra o “mal”. Presta juramento e desfila reverente diante da bandeira nacional como, no medievo, um cruzado diante do símbolo cristão. 

A contemporaneidade não desatualiza Voltaire: “o maravilhoso, nesta empresa infernal (a guerra), é que todos os chefes de assassinos fazem benzer as bandeiras e invocam solenemente Deus antes de exterminar o próximo”.

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A disposição do moderno de ver a guerra como algo excepcional ou uma aberração demanda cortes arbitrários como os estabelecidos entre o “religioso”, o “político”, o “econômico”, o “científico”, o “diplomático” e o “militar”. 

Tais distinções, bem como os sempre frustrados acordos de desarmamento, as tentativas fracassadas de classificar e regulamentar o comportamento de homens e mulheres em confrontos de vida e morte ou ainda as quiméricas neutralidades nas relações conflituosas entre Estados nacionais, camuflam o mal-estar provocado pela eliminação dos semelhantes.

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Jean Pierre Vernant, que estudou a guerra na Grécia antiga, sublinha que sua ocorrência representa a normalidade nas relações entre as cidades-estados, não um domínio à parte, com instituições específicas, agentes especializados, ideologia e valores próprios: “a guerra não é submissa à cidade, não está a serviço da política; ela é a própria política; ela se identifica com a cidade, pois o agente guerreiro coincide com o cidadão que regula igualitariamente os negócios comuns do grupo”.

O apelo do antigo à defesa comunitária nutre-se do ódio ao outro e da exaltação do valor próprio. Platão dizia que o “gosto pelo saber” caracterizava o grego e o “amor das riquezas” era próprio das almas inferiores, como os fenícios e egípcios. Sustentando a identidade grega, distinguia a guerra da “discórdia civil”, a primeira sendo a luta com o estrangeiro e, a segunda, o confronto entre os próprios gregos. 

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Aristóteles segue neste rumo, identificando povos “que não evitam os massacres e são ávidos de carne humana” como os aqueus e os heniocos. A guerra seria justa quando se tratava de vencer o maldoso e inferior; seria injusta se resultasse na escravização de homens nobres. A vitória militar, antes de impor superioridade, requer a superioridade; a força, sendo um mérito, confere direitos.

Santo Agostinho ampara-se em Aristóteles para definir a justeza das guerras movidas em nome da cristandade. O êxtase do bispo Raymond d’Agile descrevendo a tomada de Jerusalém pelos cruzados revela como o jeito cristão de santificar o derramamento de sangue não tinha limites:

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“Coisas admiráveis são vistas... Nas ruas e nas praças da cidade, pedaços de cabeça, de mãos, de pés. Os homens e os cavaleiros marcham por todos os lados através de cadáveres... No Templo e no Pórtico, ia-se a cavalo com o sangue até a brida. Justo e admirável o julgamento de Deus que quis que esse lugar recebesse o sangue dos blasfemos que o haviam emporcalhado. Espetáculos celestes... Na Igreja e por toda a cidade o povo rendia graças ao Eterno”. 

O combatente incorpora o ódio santificado ao inimigo e se apresenta como representante e símbolo da tribo, da raça, da fé, da soberania do Estado, da honra da nação, da classe social, da crença política, enfim, do coletivo que pretende submeter outro coletivo. 

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Guerreiros, em qualquer tempo e lugar, são levados a cultivar a “bela morte”: amam a vida, gostam de facilidades materiais e projeção social, mas perseguem a glória, algo além daquilo que a existência terrena pode oferecer. 

Heróis de guerra, sobretudo os mortos, são reverenciados em todas as sociedades. Nos Estados Unidos, haveria lugar em que se exija mais respeito dos visitantes que o jardim de pedras de Arlington? Nas infindáveis alamedas do cemitério, os guardas e as almas dos mortos em combate pelo domínio do mundo obrigam o respeito ao orgulho nacional. Em Paris, é menos constrangedor pigarrear em Notre Dame que no túmulo de Napoleão, comandante de incontáveis carnificinas praticadas em nome da civilização.

Santo Agostinho, contorcendo-se frente ao ensinamento “não matarás”, usa o caso de Sansão, para concluir que o homem tem direito de dar-se à morte quando ouve o sopro da divindade. Nos combates do medievo, os que não tremiam asseguravam a própria honra, as posses e o mando sobre suas comunidades. 

Em Verdun, em Stalingrado, centenas de milhares de homens ofereceram o sangue em manobras sem retorno, definiram o curso das duas guerras mundiais e ganharam monumentos como defensores de nações sacrossantas. 

Guerreiros fascinam, galvanizam multidões e animam processos sociais. Não há sociedades sem vultos paradigmáticos, sem heróis que simbolizem o comportamento que o coletivo espera de cada um. 

Washington defende suas guerras nos termos de Aristóteles e dos doutores da Igreja: a vitória, antes de impor superioridade, requer superioridade; a força confere direitos.

Para manter a hegemonia, os ocidentais precisam acreditar em sua própria superioridade. Isso exige a desqualificação dos russos. Todos os expedientes neste sentido serão válidos. A russofobia tornou-se uma necessidade para a ordem mundial agonizante.

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