Rumo ao encontro de reconstrução da UBES em Campinas

O ano era o de 1982. Era tempo de muita movimentação no movimento estudantil na cidade onde nasci e vivo até hoje, Paulo Afonso, no interior da Bahia. Em plena ditadura, lutávamos por liberdade de expressão, por grêmios livres e porque éramos contra qualquer coisa que tivesse o carimbo de “militares” no comando



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O ano era o de 1982. Era tempo de muita movimentação no movimento estudantil na cidade onde nasci e vivo até hoje, Paulo Afonso, no interior da Bahia. Em plena ditadura, lutávamos por liberdade de expressão, por grêmios livres e porque éramos contra qualquer coisa que tivesse o carimbo de “militares” no comando.

As notícias que nos chegavam eram sempre através de emissários vindos da cidade de Recife em Pernambuco ou de Salvador na Bahia. Com essa, mesmo sendo a capital do Estado tínhamos menos contatos. Outras vezes, as informações nos eram repassadas por telefone. Aí teríamos que ir para a fila da “cabine pública” da antiga TeleBahia que ficava na Rua São Francisco no centro da cidade.

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E foi assim que nos chegou à informação de estudantes secundaristas de todo o Brasil estava se programando para realizar um encontro de reconstrução de sua entidade a UBES – União Brasileira dos Estudantes Secundaristas na cidade de Campinas em São Paulo. Após vários encontros, a entidade local, CEUSPA – Centro dos Estudantes Universitários e Secundaristas de Paulo Afonso elegeram quatro delegados. Eu, Zé Ivandro, Marcos Fernandes e Nivaldo Lopes.

Foi um tal de bater de sala em sala, nas escolas para pedir ajuda aos estudantes para viabilizar a viagem até Campinas. Naquela época, quando entravámos em sala de aula, havia um grande respeito pelo trabalho que realizávamos nas escolas. Muitas eram as pessoas que nos ajudavam. Cada uma dentro das suas possibilidades.

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Quando chegou o dia da viagem, me dei conta de que aquela seria a primeira vez que iria tão distante de meu “mundo”. Me enchi de alegria, é um sentimento que lembro até os dias de hoje. O privilégio de poder ter acesso a lugares e situações nunca vividos antes. O movimento estudantil me proporcionou conhecimento e crescimento pessoal.

Saímos de Paulo Afonso às 14:30. Passávamos por estradas de terra batida. Asfalto só fomos ver quando chegamos à Feira de Santana, já a noitinha. Foi a parada para a janta. Jantar para os quatro era pão com manteiga e café, e estava tudo certo. Zé Ivandro era o mais velho da turma. Era dele a responsabilidade pelos matutos que estavam indo.

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Já quando amanhecia o dia, aquela paisagem sertaneja de árvores retorcidas e mortas, e de coloração amarronzada ficou para trás. Meus olhos estavam captando cores e matas que antes nunca tinha visto antes. O ônibus seguia por entre matas atlânticas, e eu estava mesmo abestalhado com tudo aquilo. Era como se fosse um outro mundo. E era.

Dentro do ônibus tínhamos a cara do Nordestino que saia de seus lugares em busca de trabalho e uma vida melhor em São Paulo. Pessoas com crianças de colo que pareciam ter acumulado todo o choro de meses para durante aqueles dias, despejarem em alto e bom som. Muitas histórias faladas por vizinhos de poltronas, que não se importavam de que outros soubessem da filha que fugiu com o primo, do irmão que está preso porque roubou um bode para comer de tira gosto com os amigos no final de semana. Só quem já pegou um transporte desses, sabe o quanto é divertido cada minuto na estrada.

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Durante um dia, uma noite e mais um dia, Zé Ivandro não conseguia dormir direito. Na verdade, eu sempre digo as pessoas que ele não dormiu nada. Ele tinha um sonho, queria ver a Ponte Rio Niterói. Para ele era o que valeria na viagem, e nos pedia para que, acaso dormisse, nós o acordássemos antes de entrar nela.

Na segunda noite, ele já não se aguantava de tanto cansaço. Quando começou a escurecer, a cada pequena aglomeração de luzes, ele perguntava se já era Niterói. As respostas do que conheciam a estrada era sempre, “tá longe”. Longe para nordestino é igual  “légua de beiço”, “bem alí”. Longe que só a miséra.

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De repente alguém disse, “estamos chegando”. Zé se encheu de alegria, mas não era Niterói. Já eram umas duas horas e tantas da madrugada quando sem aguentar o cansaço, ele disse, “vou dar um cochilo. Quando chegar na ponte tu me chama”. Balancei com a cabeça afirmativamente, mas com a certeza já, de que isto não aconteceria, claro. Meia hora depois, surgiu em meus olhos aquela maravilha da construção civil no mundo, a ponte Rio Niterói. Com suas luzes de sinalização mudando de formato a cada quilômetro. Aquilo era extraordinário para mim. Eu tinha o privilégio de ver a ponte Rio Niterói. Meus amigos falaram para que eu acordasse Zé Ivandro para ele ver. E eu? Disse, “não!”. Acordar era perder a graça de ver o “gordo” não ter esse prazer. E assim foi feito. Eu sabia que poderia dar em confusão, mas eu estava tão feliz e rindo que, valeria.

Quando o ônibus foi chegam ao final da ponte e entrada da cidade do Rio de Janeiro, eu bati no gordo e disse, “acorda, acorda, olha a ponte”. Ele deu um pulo na poltrona e perguntou, “cadê? Cadê?” e eu mostrei apontando que tínhamos acabado de passar por ela. O cabra ficou tão mordido de raiva que eu achei que iria ser mandado de volta no primeiro transporte que tivesse. Fechou a cara para o meu lado e só voltou a falar quando chegamos na rodoviária do Tietê em São Paulo.

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Mas antes, quando chegamos na rodoviário do Rio eu sabia que precisava pisar no solo para sentir que eu estive naquela cidade. Vi o motorista descer e fui seguindo ele. “Não tem parada aqui, é só para saber se alguém vai subir. Parei e tive um momento de decepção. Como eu não pude pisar no Rio de Janeiro. Isto para mim era como ir à lua e ficar dentro da cápsula vendo Armstrong dando seus passos antes de qualquer outro. “Eu só quero esticar as pernas um minuto”. Falei quase implorando. O motorista me olhou com uma cara feia arretada e disse, “não pode sair daqui. A felicidade me invadiu. Desci, dei uns três passos e ouvi, “vamos. Não tem ninguém para subir”. Eu enfim tinha conseguido pisar no meu solo lunar.

A viagem até São Paulo transcorreu no clima de cara fechada de Zé Ivandro, de felicidade minha e com as conversas, choros, cheiro de comida que as pessoas levaram para não ter que gastar nas paradas do ônibus. Bastava uma olhada de lado e as pessoas ofereciam algo para comer. Ser Nordestino é o que de melhor há em mim. Esse povo é lindo.

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Na rodoviária em São Paulo, vi tanta gente que confesso, fiquei assustado com tantos nordestinos juntos em um só local que não o Nordeste.

Zé Ivandro que já tinha voltado a falar comigo, estava esperando o nosso contato. Ele viria nos buscar e nos encaminhar até Campinas. O medo era da polícia naqueles dias.

A fome apertou e fomos tomar um café no primeiro andar. Ao passar por uma “borboleta”, cada um de nós recebeu um papel com vários nomes de alimentos escritos. Foi a primeira vez que tive contato com a palavra, “comanda” no sentido de que servia para anotar o que se consumia e depois passar no caixa para pagar.

Antes de terminarmos, ouvi um barulho na saída da lanchonete. Era um homem alto, com uma mala dentro de um saco e amarrado por uma embira. Ele tentava sair, mas era contido pelo rapaz que distribui as comandas. Como não tinha consumido nada. Teria que devolver o papel ao rapaz. Nervoso com a situação, aquele personagem saído da música “pau-de-arara” dos pernambucanos Luiz Gonzaga e Guio de Moraes, imortalizada pelo Rei do Baião, diante dos nossos olhos. Fomos ao encontro e conseguimos o acalmar. Tudo foi resolvido calmamente, e o homem nos olhava ainda assustado.

E lá vamos nós em direção a Campinas para o encontro de reconstrução da UBES

Leia na próxima semana: “A maleta era um saco, e o cadeado era um nó”. Nordeste nu e cru.

Na sequência, o final da história com “Deu merda no final do encontro de reconstrução da UBES”.

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