Réquiem para a nossa espécie
Os efeitos da crise climática penetram com crescente regularidade nas nossas vidas; no entanto, nós não agimos sobre isso
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Originalmente publicado no Substack. Traduzido e adaptado por Rubens Turkienicz com exclusividade para Brasil 247
Enquanto eu escrevo isso, o sol é uma esfera nebulosa avermelhada. O céu é um cinza amarelado escuro. O ar tem um odor acre e deixa um leve gosto metálico na minha boca. Após ficar 20 minutos lá fora, a minha cabeça começa a doer, o meu nariz queima, meus olhos coçam e a minha respiração fica mais pesada. As ruas estão desertas. As onipresentes empresas de serviços de corte de grama, com as suas máquinas de aparar grama e os seus barulhentos sopradores de folhas movidos à gasolina desapareceram, juntamente com os pedestres, os ciclistas e os corredores. Aqueles que caminham com os seus cães vão para fora brevemente e depois correm de volta para dentro. As máscaras N95, como nos dias iniciais da pandemia, são vendidas, juntamente com purificadores de ar. Os aeroportos internacionais de Newark e Filadélfia atrasaram ou cancelaram voos.
Eu me sinto como se estivesse numa cidade-fantasma. As janelas estão fechadas. Os aparelhos de ar-condicionado funcionam com potência máxima. O Índice de Qualidade do Ar (AQI – Air Quality Index) é verificado e re-verificado. Nós estamos em cerca de 300 de AQI. As cidades mais poluídas do mundo têm a metade deste índice. Dubai (168). Delhi (164). Qualquer coisa acima de 300 é classificado como perigoso.
Quando será que as centenas de incêndios florestais que estão queimando ao norte de nós, no Canadá, serão extintos? – incêndios que já consumiram 4,4 milhões de hectares e expulsaram 120.000 pessoas dos seus lares. O que isso pressagia? Esta época de incêndios florestais selvagens está apenas começando. Quando é que o ar ficará limpo? Em alguns dias? Em algumas semanas?
O que se pode dizer a um paciente terminal que busca alívio? Sim, este período de sofrimento pode passar, mas não acabou ainda. Isto ficará pior. Haverá mais altos e baixos, e depois na maior parte baixos, e depois a morte. Porém, ninguém quer olhar para tão longe. Nós vivemos de momento a momento, de ilusão a ilusão. E quando os céus se limparem, nós faremos de conta que a normalidade retornará. Só que não será assim. A ciência climática é inequívoca. Ela tem sido assim há décadas. As projeções e gráficos, o aquecimento dos oceanos e da atmosfera, o descongelamento das camadas de gelo polar e das geleiras, a elevação do nível dos mares, as secas e incêndios selvagens e furacões-monstros já estão vencendo a nossa espécie, e a maioria das outras espécies, com uma fúria terrível e crescente, por causa da arrogância e da loucura da raça humana.
Quanto pior ficam as coisas, mais nós recuamos para a fantasia. A lei resolverá isso. O mercado resolverá isso. A tecnologia resolverá isso. Nós nos adaptaremos. E, para aqueles que encontram consolo na negação de um sistema de crenças baseadas na realidade, a crise climática não existe. A Terra sempre foi assim. E, além disso, Jesus nos salvará. Aqueles que advertem para a iminente extinção de massa são descartados como histéricos, Cassandras, pessimistas. Isso não pode ser tão catastrófico assim.
No início de cada uma das guerras que cobri, a maioria das pessoas era incapaz de lidar com o pesadelo que estava prestes a engolfá-las. Os sinais de desintegração as rodeavam. Tiroteios. Sequestros. A bifurcação de extremos polarizados em grupos ou milícias armadas. Linguagem de ódio. Paralisia política. Retórica apocalíptica. O colapso dos serviços sociais. Escassez de comida. Existências cotidianas circunscritas. Mas a fragilidade da sociedade é emocionalmente carregada demais para que a maioria de nós a aceitemos. Nós dotamos as instituições e estruturas ao nosso redor com uma permanência eterna.
“As coisas cuja existência não é moralmente compreensível, não podem existir”, observou Primo Levi, que sobreviveu ao campo de concentração de Auschwitz.
Eu retornaria à noite em Pristina, Kosovo, após ter sido parado pelos rebeldes do Exército de Libertação de Kosovo (KLA – Kosovo Liberation Army) a alguns quilômetros fora da capital. Porém, quando eu descrevi as minhas experiências aos meus amigos albaneses kosovares – altamente educados e multilíngues – eles as descartaram. “Aqueles são sérvios vestidos como rebeldes para justificar a repressão sérvia”, eles responderam. Eles não entendiam que estavam numa guerra até que as forças paramilitares sérvias os cercaram com armas apontadas, os arrebanharam em vagões e os despacharam para a Macedônia.
Civilizações complexas acabam destruindo-se. Joseph Tainter, no livro “The Collapse of Complex Societies”, Charles L. Redman em “Human Impact on Ancient Environments”, Jared Diamond em “Collapse: How Societies Choose to Fail or Succeed” e Ronald Wright em “A Short History of Progress”, detalham os padrões familiares que levam ao colapso catastrófico. Nós não somos diferentes, apesar que desta vez todos nós cairemos juntos. O planeta inteiro. Aqueles do Sul Global, os menos responsáveis pela emergência climática, sofrerão primeiro. Eles já estão lutando batalhas existenciais para sobreviver. A nossa vez chegará. Nós, no Norte Global, poderemos aguentar mais um pouco, mas apenas um pouco. A classe bilionária está preparando a sua fuga. Quanto pior ficam as coisas, mais forte será a nossa tentação de negar a realidade que enfrentamos, de atacar os refugiados climáticos, o que já está acontecendo na Europa ao longo da nossa fronteira com o México – como se eles fossem o problema.
Wright, que chama a sociedade industrial de “uma máquina suicida”, escreve:
“A civilização é um experimento, uma maneira muito recente de vida na carreira humana, e ela tem o hábito de entrar naquilo que estou chamando de armadilhas do progresso. Uma pequena aldeia em boa terra ao lado de um rio é uma boa ideia; mas quando a aldeia cresce para se tornar uma cidade e pavimenta a boa terra, ela se torna uma má ideia. Conquanto a prevenção poderia ter sido fácil, uma cura pode ser impossível: não se move facilmente uma cidade. Esta incapacidade humana de prever, ou de ter cuidado com as consequências de longo-prazo podem ser inerentes à nossa espécie, moldada pelos milhões de anos quando vivíamos da mão para a boca, caçando e colhendo. Isso também pode ser pouco mais do que uma mistura de inércia, ganância e loucura encorajada pela forma da pirâmide social. A concentração de poder no topo das sociedades de larga escala dá à elite um interesse investido no status quo; eles continuam a prosperar em épocas de obscurecimento, muito depois que o meio-ambiente e a população em geral começam a sofrer”.
Nós construiremos freneticamente as fortalezas climáticas, como as grandes cidades muradas no final da Era do Bronze antes do seu colapso societário – um colapso tão severo que não só estas cidades ficaram em ruínas, mas a própria escrita desapareceu em muitos lugares. Talvez alguns da nossa espécie permanecerão por mais um pouco. Ou talvez os ratos dominarão o planeta e evoluirão em alguma nova forma de vida. Uma coisa é certa. O planeta sobreviverá. Ele vivenciou extinções em massa antes. Esta é singular, apenas porque a nossa espécie a arquitetou. A vida inteligente não é tão inteligente. Talvez seja por isso, com todos aqueles bilhões de planetas, que nós não descobrimos uma espécie evoluída. Talvez a evolução construiu a sua própria sentença de morte.
Eu aceito isto intelectualmente. Eu não o aceito emocionalmente, muito mais do que aceito a minha própria morte. Sim, eu sei que a nossa espécie está quase certamente condenada – mas, notem, eu disse quase. Sim, eu sei que sou mortal. A maior parte da minha vida já foi vivida. Mas é difícil digerir a morte até os momentos finais da existência e, mesmo então, muitos não conseguem enfrentá-la. Nós somos compostos do racional e do irracional. Em momentos de extremo sofrimento, nós abraçamos o pensamento mágico. Nos tornamos presa fácil para burlões, líderes de cultos, charlatães e demagogos que nos dizem aquilo que queremos ouvir.
As sociedades em desintegração são suscetíveis a cultos de crise que prometem um retorno à era dourada. A Direita Cristã tem muitas das características de um culto de crise. Os Nativos Americanos, devastados pelo genocídio, pela matança de rebanhos de búfalos, pelo roubo da sua terra e encarcerados em campos de prisioneiros de guerra, agarraram-se desesperadamente à Dança dos Fantasmas. A Dança dos Fantasmas prometia expulsar os invasores brancos e ressuscitar os guerreiros e os rebanhos de búfalos. Ao invés disso, os seguidores foram ceifados pelo Exército dos EUA com rifles de montanha Hotchkiss MI875.
Nós devemos fazer tudo que está em nosso poder para parar as emissões de carbono. Devemos enfrentar a verdade de que as elites corporativas dominantes no mundo industrializado jamais nos extrairão dos combustíveis fósseis. Apenas se estes corporativistas sejam derrubados – como o proposto pelos grupos como 'Extinction Rebellion' [Rebelião Contra a Extinção] – e forem tomadas medidas radicais imediatas para acabar com o consumo de combustíveis fósseis, bem como reduzir a indústria agrícola de animais, nós seremos capazes de mitigar alguns dos piores efeitos do ecocídio. Mas eu vejo isso como algo provável, especialmente considerando as formas sofisticadas de controle e vigilância que os oligarcas globais têm ao seu dispôr.
A terrível verdade é que, mesmo que nós paremos com todas as emissões de carbono hoje, há tanto aquecimento armazenado no fundo profundo e lamacento dos oceanos e na atmosfera, que os círculos de retroalimentação garantirão a catástrofe climática. O gelo do verão ártico, que reflete 90% da radiação solar que entra em contato com ele, desaparecerá. A superfície da Terra absorverá muito mais radiação. O efeito-estufa será amplificado. O aquecimento global será acelerado, derretendo o permafrost siberiano e desintegrando a camada de gelo da Groenlândia.
O gelo derretido na Groenlândia e na Antártica “aumentou cinco vezes desde os anos de 1990, e agora responde por um quarto do aumento do nível do oceano” segundo um relatório recente financiado pela NASA e a Agência Espacial Europeia. O aumento contínuo do nível do mar, que se duplicou em três décadas, segundo a Organização Meteorológica Mundial, é inevitável. As florestas tropicais se incendiarão. As florestas boreais se moverão para o norte. Estes e outros circuitos de retroalimentação já estão construídos no ecossistema. Não podemos impedi-los. O caos climático, incluindo as temperaturas elevadas, durarão por séculos.
A crise existencial mais difícil que nós enfrentamos é a de, ao mesmo tempo, aceitar esta sombria realidade e resistir a ela. A resistência não pode ser feita porque terá sucesso, mas porque é um imperativo moral – especialmente para aqueles de nós que temos filhos. Nós podemos fracassar, mas se não lutarmos contra as forças que estão orquestrando a nossa extinção em massa, nos tornamos para do aparato da morte.
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