Reforma e crise política no Brasil

Considerações sobre o livro de Armando Boito Jr.

Pronunciamento do presidente da República recém empossado, Luiz Inácio Lula da Silva.
Pronunciamento do presidente da República recém empossado, Luiz Inácio Lula da Silva. (Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado)


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1.

Reforma e crise política no Brasil reúne onze artigos de análise política e um apêndice em que o autor responde a críticas que foram endereçadas às suas teses. Escritos e publicados entre 2007 e 2017, foram reproduzidos sem qualquer alteração em relação à versão original. Esse fato, raro em coletâneas de textos voltados para a compreensão da conjuntura histórica, atesta, por si só, a qualidade e a relevância do livro de Armando Boito Jr.

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A atualidade desses textos, redigidos no calor da hora, deve-se, em larga medida, ao manejo rigoroso de um consistente arcabouço teórico, articulado de forma precisa com os dados empíricos. O método adotado no livro, na melhor tradição do marxismo, evita descolar a política da economia e da vida social. Tampouco ignora os antagonismos derivados da clivagem da sociedade em classes.

Armando Boito Jr. não esconde suas fontes. Reitera em várias passagens que incorpora em seu aparato teórico conceitos apresentados e desenvolvidos por Nicos Poulantzas. Em Reforma e crise política no Brasil os dois conceitos mais utilizados e decisivos são “bloco no poder” e a consideração do jogo entre as “frações de classe”. Não se trata, evidentemente, de uma absorção mecânica, mas de uma adaptação orientada segundo as peculiaridades do objeto de estudo.

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O arco histórico abordado estende-se da posse de Lula, em 2002, ao golpe que derrubou a presidenta Dilma Rousseff em 2016. Armando Boito Jr. se detém, nas duas partes que compõe o livro, sobre questões distintas e interconectadas: a ação das classes sociais nos esforços de reforma dos governos do PT e a “natureza e dinâmica da crise política do impeachment”.

2.

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Nos primeiros artigos do livro, Armando Boito Jr. procura responder questões fundamentais da análise política dos anos recentes: qual foi a base social de sustentação dos governos de Luiz Inácio Lula da Silva? Que arranjos de forças permitiu que eles sobrevivessem às tentativas de desestabilização, como a encetada em 2005 durante a crise do “mensalão”? A investigação não se preocupa, ao contrário da maior parte da bibliografia sobre o assunto, em identificar a base eleitoral do PT. Afinal, a pergunta não é como Lula chegou lá, mas sim como se manteve lá – a despeito da desarticulação do campo popular no Brasil, fator que impossibilitou mobilizações em sua defesa.

O procedimento adotado nesses artigos passa pela determinação da composição, durante o período abordado, do “bloco no poder”. Esse conceito supõe, contrariando ilusões do democratismo, que o Estado capitalista prioriza em suas ações os interesses do grande capital, mesmo quando busca arrefecer o conflito de classes e estabilizar a dominação burguesa. Nicos Poulantzas utilizou-o, nas palavras de Armando Boito Jr., “para pensar a classe burguesa como a unidade (classe social) do diverso (frações de classe) nas suas relações com o Estado e com o restante da sociedade” (p. 22).

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A tarefa de nomear e distinguir as frações do capital não se limita a elencar os agentes representativos das diversas áreas da economia – banqueiros, industriais, fazendeiros, comerciantes etc. Exige a identificação dos interesses que reúnem um grupo determinado em contraposição com outros agrupamentos de capitalistas. Solicita, por conseguinte, o acompanhamento e observação do histórico dos propósitos e ações, em geral contraditórios, dos diferentes setores da classe capitalista.

Nesse diapasão, a dinâmica do aparelho estatal e da estrutura partidária é explicada por meio do conflito interno da classe burguesa. O atendimento das demandas do capital, necessariamente desigual, estabelece uma espécie de hierarquia entre as frações. O setor privilegiado pela política econômica executada pelo Estado é denominado como “fração hegemônica”.

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Um componente relevante do conflito é constituído pelas relações dessas frações com as classes trabalhadoras. Armando Boito Jr. esclarece que a preferência pelo termo “conflito” – presente já no subtítulo do livro, “Os conflitos de classe nos governos do PT” – visa destacar que a competição gira em torno da redistribuição da mais-valia produzida. Ele reserva o termo clássico, “luta de classes”, para situações em que a disputa tende a colocar em xeque o próprio sistema capitalista.

Segundo Armando Boito Jr., o processo de mundialização, intensificado nas últimas décadas, não dissolveu integralmente, em países da semiperiferia do capitalismo, a combinação de interesses que permitem discernir entre uma burguesia “interna” e uma “associada”. Enquanto a primeira ainda alicerça a maior parte de seu processo de acumulação em estruturas locais, a segunda pode ser definida como “o braço local da atual forma de dependência” (p. 26).

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A tese que o livro se propõe a comprovar afirma que a partir do governo de Fernando Collor, com a implantação do neoliberalismo no Brasil, a burguesia associada estabeleceu-se como fração hegemônica. O governo Lula, porém, promoveu a ascensão, no interior do bloco no poder, da grande burguesia interna, aumentando seu peso relativo na determinação das ações do Estado.

Em traços gerais, Reforma e crise política no Brasil sustenta que o modelo neoliberal (que sucedeu, a partir dos anos 1990, o modelo desenvolvimentista), ao promover o retrocesso de conquistas trabalhistas e sociais, conquistou o apoio do conjunto da classe capitalista. Seus desdobramentos, a abertura comercial, a desregulamentação financeira, e mesmo a política de privatizações contrariou, no entanto, os interesses de parcelas expressivas do grande capital nacional.

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A partir da segunda metade da década de 1990, ensaiou-se uma aproximação, por meio de esforços e pautas conjuntas, entre associações patronais e centrais sindicais. Abriu-se assim o caminho para uma convergência que, após a posse de Lula na presidência, desaguou na constituição de uma “frente política neodesenvolvimentista”, suporte social das políticas de crescimento econômico e de transferência de renda dos governos do PT.

Essa frente política foi dirigida pela grande burguesia interna brasileira. Incluiu em seu amplo leque a maior parte dos setores populares: a baixa classe média, o operariado, o campesinato e os trabalhadores informais (nomeados no livro, seguindo uma rica tradição da sociologia latino-americana, como membros da “massa marginal”). Surgiu e se consolidou como contraponto à, até então hegemônica, aliança entre o grande capital financeiro internacional, a fração burguesa subordinada e integrada a esse capital, setores dos grandes proprietários de terra, e a alta classe média (estatal e privada).

Armando Boito Jr. não deixa de chamar atenção para o fato de que a participação política das classes populares contribuiu, ao longo da história do capitalismo brasileiro, para impulsionar ciclos de desenvolvimento econômico. Esse movimento se explica, em parte, pela debilidade da burguesia interna diante da força da burguesia associada. Acrescente-se a isso a dificuldade da burguesia interna em conciliar e unificar os interesses conflitantes de seus diversos setores: grande indústria, setor bancário nacional, agronegócio, empresas estatais etc.[i] A soma desses fatores, matriz de um equilíbrio instável, ajuda a compreender o caráter volúvel da ação política da burguesia interna.

No livro recorre-se ao termo “neodesenvolvimentismo” para modular as diferenças entre o ciclo de crescimento promovido nos governos de Lula e de Dilma Rousseff, e o velho desenvolvimentismo do período 1930-1980. O projeto econômico neodesenvolvimentista designa, em termos mais precisos, a política de desenvolvimento possível dentro dos marcos do modelo capitalista neoliberal periférico.

Armando Boito Jr. vale-se também desse arsenal teórico para abordar outros assuntos presentes na primeira parte do livro como, por exemplo, a relativa recuperação da capacidade de ação do movimento sindical brasileiro. Em outro artigo comprova o alcance e a eficácia de sua teoria, mostrando que o giro da política externa nos governos do PT decorre de uma mudança no interior do bloco no poder, tendo se tornado rapidamente uma das fontes de fortalecimento da grande burguesia interna.

3.

A segunda parte de Reforma e crise política no Brasil é dedicada integralmente a análises dos governos de Dilma Roussef e do golpe que a derrubou. Para compreender os fatos desse período, Armando Boito Jr., com uma coerência ímpar, mobiliza o mesmo arcabouço teórico assentado nos conceitos de “bloco no poder” e “frações de classe”, mostrando que servem tanto para explicar a estabilidade como a desestabilização do poder governamental.

A sucessão de eventos que culminou na deposição da presidenta Dilma Rousseff é apresentada como momentos de uma “ofensiva restauradora” desencadeada pelo capital internacional e pela fração da burguesia brasileira a ele associada. Para explicar o processo que consolidou, sem grande resistência, a mudança da fração hegemônica no bloco do poder, Armando Boito Jr. reporta-se a alguns fatores pouco destacados, embora presentes, no primeiro bloco do livro.

Ressalta, por exemplo, o papel exercido pela “alta classe média” no processo de destituição de Dilma Rousseff. Essa camada social, durante os dois governos Lula, manteve-se alinhada à pauta da política oposicionista comandada pela grande burguesia associada. A partir de 2013, porém, adquiriu maior relevo, tornando-se protagonista de movimentos decisivos para o êxito da “ofensiva restauradora”. Os dirigentes da operação Lava-jato são, ao mesmo tempo, integrantes e representantes da fração superior da classe média.

Em colaboração estreita com a parcela da burocracia estatal encarregada da manutenção da ordem capitalista – membros do Judiciário, do Ministério Público, da Polícia Federal etc. – desencadearam uma série de ações que contribuíram decisivamente para o desgaste do governo e do PT. Além disso, a alta classe média participou ativamente e de forma massiva de manifestações de rua que legitimaram o golpe de agosto de 2016.

Essas ações frutificaram num terreno minado, a instabilidade crônica do presidencialismo, da representação política e da própria democracia vigente no Brasil. Porém, tendo em vista a execução, durante os governos do PT, de uma política econômica que contemplava quase que integralmente as demandas da grande burguesia interna, como explicar sua adesão ao programa oposto, ao neoliberalismo ortodoxo?

Essa conversão, a subordinação passiva da grande burguesia interna à hegemonia e aos interesses da burguesia financeira associada, deriva, segundo Armando Boito Jr., de contradições internas da frente neodesenvolvimentista. Com o recrudescimento da crise econômica e política, adquire proeminência o conflito, sempre latente, entre o grande capital interno e a classe trabalhadora.

A pauta de reivindicações da grande burguesia interna – priorizada nos governos Lula e nos dois primeiros anos do mandato de Dilma Rousseff –, contrária aos interesses do capital internacional e financeiro, cede lugar a uma pauta afinada com a prática política neoliberal. As diferentes frações da classe capitalista convergem, reiterando num mesmo mantra, exigências imperativas: reforma trabalhista, reforma da previdência social, ajuste fiscal assentado na redução de gastos sociais etc.

Reforma e crise política no Brasil, em sua análise do bloco no poder e das bases sociais dos governos do PT, concede especial relevância aos movimentos da grande burguesia interna. Para tanto, acompanha as oscilações desse setor do capital ao longo das três últimas décadas. Nos anos 1990, a grande burguesia interna deslocou-se paulatinamente, apresentando-se como uma oposição seletiva ao neoliberalismo recém implantado e hegemônico.

A partir de 2003, durante os dois governos Lula e o primeiro mandato de Dilma Rousseff, ascendeu à condição de fração dirigente da frente neodesenvolvimentista. Com a intensificação da crise econômica, retroalimentada por uma crise política forjada pelos grupos derrotados eleitoralmente em 2014, a grande burguesia interna adere ao bloco golpista, alinhando-se, com escassas ressalvas, às reformas neoliberais realizadas durante o governo de Michel Temer.

Publicado originalmente na revista Crítica Marxista nº. 48.

Referência

Armando Boito Jr. Reforma e crise política no Brasil: os conflitos de classe nos governos do PT. Campinas\São Paulo, Unicamp\Unesp, 336 págs.

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