Reflexões sobre o negacionismo na Alemanha, Sean Penn e os novos tempos da humanidade
É preciso que se diga que embora os nazistas dominem a esfera da anticiência, eles não são os únicos habitantes dela. Infelizmente há pessoas de todo o espectro político
✅ Receba as notícias do Brasil 247 e da TV 247 no canal do Brasil 247 e na comunidade 247 no WhatsApp.
Carxs leitorxs, sei que o título deste artigo se mostra bastante curioso. Mas vou contextualizá-lo e vocês logo compreenderão o motivo de eu tê-lo escolhido. Voltaire já dizia no século XVIII que “a dúvida não é uma condição agradável, mas a certeza é absurda”, e realmente em se tratando do futuro da humanidade qualquer asserção parece hoje cada vez mais despropositada. É fato que nos encontramos em um momento em que há muito mais perguntas do que respostas acerca do destino do homem na Terra. Realidades que não se mostravam até pouco tempo, hoje se fazem presentes em diversas áreas: o Brasil é governado por um neonazista, o aquecimento global apresenta cada vez mais as suas consequências, e a pandemia de COVID-19 parece se provar a cada dia mais imprevisível.
Bem, e como o ser humano reage a tudo isso? Sem confundir o dualismo existencial com alguma espécie de maniqueísmo simplista, fica claro que a humanidade de fato se reparte em dois. Em termos políticos, fundamentalmente há aqueles que se colocam ao lado do Humanismo e aqueles que são contrários a ele ou simplesmente o ignoram de acordo com seus próprios egocêntricos interesses. Já especificamente sobre a pandemia – que é o tema principal deste artigo –, tal dualismo se evidencia entre os que acreditam nos esforços científicos do homem, versus os que se opõem a estes. E nos é necessário uma pandemia mundial para compreendermos como é imenso o número de pessoas que ainda vive mentalmente “antes do Iluminismo”.
Pois bem, nosso título acima possui três partes, e vamos agora à primeira. A Alemanha é hoje um país livre, moderno e progressista em termos sociais e ideológicos – ao menos se compararmos com o mundo como um todo. Em termos de consciência social e comunitária – e consequentemente política e eleitoral – a sociedade alemã é incomparável por exemplo à brasileira ou à estadunidense, mostrando-se anos-luz à frente destas. Em minha opinião, enquanto educador que trabalhou em todos os níveis estudantis antes de se tornar professor acadêmico, o motivo para que esta realidade se dê se estrutura em dois pilares. E ambos são bastante óbvios: o primeiro é a decente Educação pública, oferecida satisfatoriamente a todos, o que evita que um percentual tão assustadoramente alto da população acredite em fake news e seja tão ignorante sociopoliticamente, como vemos nos outros dois países citados. E o segundo é o fato de que os meios de comunicação aqui não são inteiramente privados e/ou detidos por algumas poucas famílias, como no Brasil, no melhor estilo do coronelismo federal. Não há aqui nem de perto alguma empresa com o poder de uma Globo ou de uma Record. Ou de uma FoxNews, nos EUA. E estes dois pilares, ao meu modo de ver, garantem à sociedade alemã a integridade que as sociedades brasileira e estadunidense não possuem.
Mas apesar disto tudo, mesmo que lhe sejam oferecidas as ferramentas necessárias para que não despenque no profundo buraco da ignorância da anticiência, não podemos fugir daquilo que o ser humano às vezes carrega em sua essência. Ele é o que é, e sempre haverá os que conspiram pela inverdade, e consequentemente os que bebem desta conspiração. Por isso, hoje, ao entrar em qualquer livraria alemã, seja física ou virtual, encontra-se entre os best-sellers oferecidos livros negacionistas, escritos por autores alemães para leitores alemães. Após o desgosto, o que me causa grande reflexão neste cenário é a questão da liberdade que há na sociedade alemã para a propagação de fake news e teorias conspiratórias e negacionistas. Bem, olhemos este tema um pouco mais adentro.
Ainda – e por longuíssimo tempo será assim, acredito eu – vivem os fantasmas do Nazismo dentro da sociedade alemã. As consequências de tudo o que Hitler pregou e realizou se fazem presentes em absolutamente tudo o que ocorre no universo e no dia a dia do povo que vive na Alemanha. É em grande parte por isso que a questão da liberdade de expressão seja, muito felizmente, levada realmente a sério. O problema se apresenta quando surge a indagação de “onde se traça a tênue linha” que separa a liberdade de expressão do combate à ilegalidade. Esta temática é muito extensa, mas neste artigo focaremos somente e especificamente no conceito do negacionismo. Vejam: na Alemanha é proibido negar que o Holocausto tenha ocorrido, uma lei logicamente acertada e necessária. Mas é permitido afirmar, publicar e disseminar a ideia de que a pandemia de COVID-19 é falsa, que a vacina é uma arma química, e outras alucinações do gênero. Onde afinal deve ser traçada a tal linha? Qual deve ser o limite? Deve ser permitido afirmar abertamente que 2 + 2 = 5 (como dizia o grande Orwell)?
Bem, o argumento das autoridades é o seguinte: se proibirmos a venda deste tipo de material à luz do dia, ele emergirá no submundo. E isto seria muito pior, uma vez que se tornaria muito mais difícil controlá-lo. Estando nas estantes das maiores livrarias, sabemos ao menos onde o livro está e temos uma ideia de quantas pessoas o compram, em quais regiões se compra mais, etc. Pessoalmente concordo com o argumento. Mas penso que ele não se basta inteiramente. Acredito que tais livros deveriam continuar a ser livres para a venda, mas deveriam receber um selo que comunicasse e alertasse o leitor de que o Robert Koch-Institut (agência federal alemã responsável pela pesquisa e pelo controle e prevenção de doenças) desaprova o conteúdo deste material baseando-se em fundamentos científicos. Mas tal selo nunca será colocado em livros alemães, também por conta das eternas cicatrizes do Nazismo. Assim, selos em livro que poderiam lembrar de alguma forma estrelas amarelas em pessoas, se encontram rapidamente fora de cogitação. A mesma lógica infelizmente funcionou para a desaprovação do Passaporte Verde (documento que as pessoas vacinadas receberiam), algo que vem sendo utilizado com muito sucesso em Israel, por exemplo.
Antes de prosseguir, preciso inserir aqui um adendo que não posso deixar passar. Como fica a questão das livrarias que vendem tais livros negacionistas? Bem, aqui impera a asquerosa lógica capitalista: “eu não tenho alma, eu vendo qualquer coisa, afinal minha adoração é pelo Capital”. Assim, a imensa maioria das livrarias alemãs o fazem, felizes em ter em seus catálogos mais um best-seller, independentemente do quão nocivo à humanidade este possa ser. Logicamente há livrarias comprometidas para com a verdade e para com o combate a teorias conspiratórias, que abrem mão de qualquer lucro sujo proveniente da venda de tais materiais. Mas, em um mundo capitalista, infelizmente estas constituem uma minoria.
Voltemos. E chegamos agora à segunda parte do título deste artigo. Onde entra aqui o ator e ativista social e político Sean Penn? Bem, Penn, além de ser meu ator preferido, é um ser humano inegavelmente interessante. Judeu estadunidense esquerdista e humanista, sempre bateu em Bush e em Trump, defendeu Cuba e Venezuela, visitou locais catastróficos como o Iraque, o Irã e o Paquistão para trazer ajuda internacional. Dedica grande parte de sua vida à instituição que fundou, a CORE - Community Organized Relief Effort (‘Esforço de auxílio comunitário’), organização sem fins lucrativos que serve o Haiti, as Bahamas, o Caribe e Porto Rico, além dos próprios EUA. Ah, e ele entrevistou El Chapo, o que também é para poucos. Enfim, accolades a parte, Penn entra neste artigo pelo seguinte motivo: há alguns dias ele afirmou que se toda a equipe da série de televisão ‘Gaslit’ (um thriller político em que ele é um dos atores principais) não estiver inteiramente vacinada, ele não atuará mais no programa. Por que isto é muito importante? Pois Penn é o primeiro mundialmente famoso e influente a se colocar nesta posição, sob a visibilidade do planeta inteiro e desafiando as engrenagens da indústria multibilionária do entretenimento. E na sexta-feira passada (20.8) em entrevista a Stephen Colbert, Penn falou em rede nacional sobre o conceito de ‘interdependência’, ou seja, como não é possível vencer uma pandemia se há grupos na sociedade que atuam a favor do vírus e não contra ele.
Por fim, chegamos ao terceiro conceito do título do artigo, a ideia de que muito possivelmente estejamos ingressando em novos tempos da humanidade: uma nova era onde o vírus COVID-19 e/ou suas variantes sempre estarão presentes, uma vez que a humanidade não conseguirá erradicá-lo graças a uma parcela da população que, por ser negacionista e contrária à ciência, rompe com o círculo necessário para se atingir a cura. Imaginemos: se isto ocorrer, as medidas de prevenção hoje vigentes se tornarão permanentes? Máscaras, distanciamento social, testes de saúde para diversas ocasiões, contato físico limitado, doses de vacinas renovadas anualmente? As pessoas da futura geração acharão engraçado pensar que seus pais outrora entravam em lojas sem máscaras e que o cumprimento universal entre duas pessoas consistia em dar as mãos? Tudo é possível no momento. A humanidade parece saber cada vez menos sobre o seu futuro.
Aqui na Alemanha há atualmente 69,4 milhões de adultos, ou seja, pessoas que poderiam e deveriam ser vacinadas. Destas, 17,8 milhões se negaram a isto (dados publicados no Berliner Zeitung em 5.8.2021). Este número representa que a cada quatro pessoas, uma é negacionista ou, como se diz em alemão, “Impfgegner” (“oponente à vacina”). E tem mais: um estudo realizado pelo projeto COSMO (COVID-19 Snapshot Monitoring) da Universidade de Erfurt indica que as pessoas que se negaram a ser vacinadas, além de oferecerem perigo à sociedade pelo simples fato de permanecerem possíveis portadoras do vírus, ainda por cima são as que menos obedecem as regras de prevenção à doença: a seguem em cerca de 10% menos do que os vacinados.
E quem afinal são os quase 18 milhões de adultos “antivacina” na Alemanha? Bem, para a surpresa de absolutamente ninguém, quem encabeça esta lista são os ultradireitistas, os neonazistas, os supremacistas brancos etc. De todos os grandes partidos alemães, o único que sempre que se tem a oportunidade se coloca contra a vacinação é o AfD. Sim, o AfD é o partido neonazista alemão com roupagem contemporânea e é o partido irmão do bolsonarismo na Alemanha, ao qual pertence a neonazista mais “respeitada” do momento, Beatrix von Storch, que foi convidada de honra da família Bolsonaro há algumas semanas. Ou seja, tudo dentro da coerência política do mundo atual.
Mas é preciso que se diga que embora os nazistas dominem a esfera da anticiência, eles não são os únicos habitantes dela. Infelizmente há pessoas de todo o espectro político. Há até mesmo humanistas que não conseguem se livrar das garras das teorias conspiratórias. Eu pessoalmente conheci alguns destes nos últimos tempos… Mereceria um estudo psicológico e sociológico...
Em suma, o hoje não é simples e o amanhã é incerto. Mas seguimos em frente. E esperamos que o exemplo de Sean Penn inspire outras pessoas de tanta influência a fazerem o mesmo, afinal o negacionismo deve ser combatido ativamente, já que – provavelmente infelizmente – estamos todos conectados.
E para concluir este artigo de tema tão sério e deprimente, trago uma passagem da entrevista de Penn com Colbert que também nos ensina – de uma outra maneira – a suportar o caos que vivemos neste planeta. Após conversarem sobre a doença, o ativismo e o ato de realizar coisas boas ao mundo, o entrevistador pergunta a ele: “Você se coloca em áreas que estão em crise e investe a si mesma nas necessidades destas pessoas. Como você, especialmente olhando para o mundo como está hoje, combate o desânimo?” Penn, com a feição séria e ao mesmo tempo prazerosa, responde imediatamente, antes mesmo da câmera retornar a ele: “Vodka tonic”.
Assine o 247, apoie por Pix, inscreva-se na TV 247, no canal Cortes 247 e assista:
Este artigo não representa a opinião do Brasil 247 e é de responsabilidade do colunista.
Comentários
Os comentários aqui postados expressam a opinião dos seus autores, responsáveis por seu teor, e não do 247