Reflexões sobre a tragédia brasileira e uma proposta de mudança

O golpe jurídico-midiático – articulado, planejado e em parte executado no exterior, que levou ao afastamento da Presidente eleita Dilma Rousseff, em 2016 – fez emergir, de modo aguçado, diversas de nossas mazelas que vinham sendo tratadas pelos governos Lula e Dilma

Brasília- DF- Brasil- 09/04/2015- O novo presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Jessé de Souza, durante cerimônia de posse (Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil)
Brasília- DF- Brasil- 09/04/2015- O novo presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Jessé de Souza, durante cerimônia de posse (Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil) (Foto: Pedro Augusto Pinho)


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Este administrador aposentado considera Jessé Souza (foto) o maior sociólogo brasileiro. Tenho lido seus livros, coletâneas, por ele organizadas, artigos e este último e esclarecedor “A Elite do Atraso – da escravidão à lava jato” (Leya, RJ, 2017).

É possível distinguir nesta obra o que temos de jabuticaba, o que temos de mente colonizada e o que fazemos por obediência (vá lá que assim se considere) ou por ameaças e ação corruptora dos interesses estrangeiros no Brasil e da elite local a ele associada.

O golpe jurídico-midiático – articulado, planejado e em parte executado no exterior, que levou ao afastamento da Presidente eleita Dilma Rousseff, em 2016 – fez emergir, de modo aguçado, diversas de nossas mazelas que vinham sendo tratadas pelos governos Lula e Dilma.

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Jessé Souza discorre, em especial, sobre esta fase da vida nacional, e o faz dentro do contexto histórico e civilizacional brasileiro, com embasamento no mais atual e aprofundado estado da construção sociológica e das teorias epistemológicas.

Procurarei apresentar um conciso sumário, pois pretendo me dedicar a possíveis saídas para a crise que vivemos.

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Fonte de nossos males é a não resolvida situação da escravidão pela elite do Brasil. Com a mesma crueldade com que estas tratam a pobreza, digo que é semelhante ao ódio que devotam aos homossexuais, os que não resolveram adequadamente sua própria sexualidade.

Mas não há apenas esta variável. Como toda realidade social, a nossa decorre de diversos vetores, com direções até opostas, mas que na resultante chega ao estado civilizatório que vivemos.

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Há em nossa historiografia recente um sujeito oculto, responsável pelo estado civilizatório que nos encontramos: o mercado. Por exemplo: “O Arcaísmo como Projeto” (J. Fragoso e M. Florentino, Diadorim, RJ, 1993) e “A Colônia em Movimento” (Sheila Faria, Nova Fronteira, RJ, 1998, 3ª impressão).

A construção que ganhou foro científico, de verdade insofismável, não o considera fundamental mas um simples, quase dispensável, contraponto, até virtuoso, ao Estado. E é este Estado que tem um vício “de origem”: o patrimonialismo.

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Detenho-me neste ponto por sua relevância, não apenas na obra de Jessé Souza, mas na necessária compreensão do que deveremos tratar.

A evolução brasileira, ainda que com alguns valores importados da civilização judaico-romana, teve um componente específico, de fundamental importância, para sua organização e funcionamento: a escravidão. E apesar da junção quase automática, não foi a escravidão negra. Esta foi majoritária e comercialmente explorada, gerando um negócio específico no Atlântico Sul.

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Mas a escravidão se deu, sob diversas formas, de todos que se submetiam ao senhor das terras, aos “capitães hereditários”, desde o início da ocupação europeia do Brasil.

Esta sociedade escravista acontece no sistema econômico liberal. Como sabemos, Portugal não tinha um modelo de colonização único e estruturado. Sua pequena população não conseguiria cuidar da diversidade e extensão das áreas descobertas ou conquistadas. No Brasil a colonização foi entregue aos que podiam ocupar as terras e para isso nenhuma restrição se lhes poderia fazer.

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Foi um tempo de domínio senhorial, onde uma parcela pouco estudada de pessoas livres – forras ou socialmente marginais – desenvolviam seus modos de vida e deram sustentação – em produtos, serviços e comércio – ao sistema de plantation, da sociedade colonial.

Mas, ignorando totalmente a formação e organização da sociedade brasileira, foi atribuído ao “patrimonialismo estatal” o principal, quiçá único, grande problema nacional. E, pior ainda, como originado da sociedade imperial portuguesa, onde nem escravos havia.

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Foi o mercado concentrado, procurando o monopólio,  que conquistou o Estado e o colocou a trabalhar para seu fortalecimento e enriquecimento, sem restrições éticas ou morais. E toda vez que os ex-escravos, os pobres da “colônia em movimento” conseguiam um espaço naquele Estado, vinha a pecha degradante do “populismo”.

Mas o “capital econômico” não é o único que constituirá uma elite. Temos um “capital cultural” e um “capital social”. Estes capitais, descritos na trabalho historiográfico  “Mulheres Forras – Riqueza e Estigma Social”, de Sheila Faria para revista Tempo (UFF, nº 9, julho/200), mostram que a sociedade escravista tirou qualquer dignidade que os escravos, em especial as mulheres, e pessoas livres de obrigações com o Mercado e seu agente, o Estado, pudessem almejar, por mais que tivessem bens a apresentar.

“É o monopólio dos capitais que irá fazer com que uma classe social possa reproduzir seus privilégios de modo permanente” (Jessé Souza).

E a classe média, impossibilitada de disputar os três capitais, vai buscar seu reconhecimento na meritocracia dentro do capital cultural. Falsa sustentação que exigiria de todos o mesmo ponto de partida. Leiamos Pierre Bourdieu: “o que se pretende medir é a acumulação da formação adquirida por meio da família e da aprendizagem escolar, que já supunha aquela formação prévia” (grifos meus).

Souza distingue quatro frações de classe média. A quantitativamente maior ele denomina “fração liberal”. Ela propugna pela convivência democrática, ela acredita na construção do mundo moral e justo pelo esforço de cada um, ela não vê com clareza o “moralismo cínico” da elite. É esta fração que se sente enganada com o golpe de 2016.

Outra fração é a “classe média de Oslo”. Esta “tira onda de moderna e emancipadora”. “Como a questão da divisão da riqueza e poder está em segundo plano, o capitalismo financeiro está muito à vontade” nesta fração. Vai daí o apoio de bancos nacionais e estrangeiros à candidatura de Marina Silva. “Essa é a inteligência do novo capitalismo que usa a linguagem da emancipação para melhor oprimir e explorar”.

Segue a fração protofascista que “se espraia da classe média para setores significativos das classes populares”. É a classe do ódio às classe mais desfavorecidas. É a classe dos fundamentalismos religiosos e a menos reflexiva. Como assinala Souza, “ela se orgulha de dizer o que lhe vem à mente”. E, como não consegue elaborar uma crítica, assume qualquer reparo como “negação da sua personalidade”.

A menos numerosa das frações é a crítica. Ela busca “se sentir pertencendo a correntes dominantes de opinião”. Ela é influenciada pelos modismos acadêmicos e procura apoios, o que lhe deixa “prenhe de contradições”, buscando soluções para os conflitos de classe, na sociedade de classes.

Mas, em todas frações da classe média, por seus próprios e distintos motivos, a comunicação de massa da elite, caracterizada pela Rede Globo, “nada de braçada”.

Que caminhos vejo para nossa libertação? Já os apresentei em alguns artigos, e venho perseguindo maior nitidez e consistência: a luta, no sentido de uma campanha, pela soberania nacional e pela construção da cidadania.

campanha pela soberania identifica no capital financeiro a oposição à construção de um País governado democraticamente por seus habitantes, tendo o controle de todos seus recursos naturais, com o desenvolvimento científico adequado à exploração desses recursos e o domínio das tecnologias que garantam a independência decisória brasileira, quais sejam: a informática, a nuclear, a aeroespacial e a energética.

É constitutivo da soberania, por exemplo, o controle estatal das finanças, da moeda e do câmbio. Também a pesquisa, desenvolvimento e fabricação de veículos e equipamentos bélicos, assim como armas e municões, única e exclusivamente pelo Estado.

construção da cidadania é reconhecer, efetivamente, em cada brasileiro um par, isto é, um igual. Não termos “gentes” e “não gentes”, cidadãos de primeira e de outras categorias. Para termos pares e incentivá-los à participação, três programas devem ser simultaneamente executados: existência, consciência e vocalização.

Existência significa que todo brasileiro terá o mínimo indispensável para uma existência digna. Isto significa que os orçamentos públicos, em todos os entes federativos, destinarão com precedência absoluta: a) recursos para a renda mínima, referenciada ao salário mínimo, num programa semelhante à plataforma da bolsa família; b) o atendimento integral e total da saúde, com os programas preventivos – de saúde, de higiene, de saneamento básico – e corretivos – com  fornecimento de exames e produtos curativos e farmacêuticos; c) a mobilidade urbana operada unicamente com recursos tributários e d) a habitação. Os programas habitacionais poderão visar a propriedade da moradia ou a disponibilidade de residências, como o existente em Singapura (o Estado constrói e loca residências em contratos por 100 anos, por indivíduo ou família).

Consciência é o projeto educacional amplo que não objetiva somente a transmissão de conhecimentos mas a consciência de si mesmo e do outro. É o processo de valorização e compreensão de todas as culturas nacionais, é o processo de aceitação das diferenças, de qualquer tipo: raciais, de gênero, de fé, e manifestações artísticas e culturais. É o entendimento e a aceitação da responsabilidade cidadã. Este projeto tem componentes nacionais e regionais, sendo portanto de responsabilidade de todos entes federativos.

Vocalização é a certeza de dispor de informações múltiplas, da democrática manifestação de desejos e ideias, sendo garantida voz a todos os brasileiros. Para isso, este programa se desdobra no acesso à informação plural e na vocalização individual. Para o primeiro, cada unidade da federação e o governo federal constituirão, sob o controle majoritário da sociedade, emissoras públicas de rádio e televisão, com garantias legais de funcionamento sem interferência do Estado nem do Mercado. Também todos os entes federativos e os poderes constituídos pelo voto direto e universal poderão ter suas emissoras de rádio e televisão estatais. O mercado poderá constituir, sem formação de cadeia nacional, limitada a propriedade de um único canal de rádio ou de televisão em  um único estado da federação, seu veículo de comunicação privada em regime de competição.

O governo federal promoverá, por seu órgão de projeto e construção da informática brasileira, os sistemas de uso irrestrito da internet, com programas e linguagens desenvolvidos no País, e a fabricação de equipamentos para comunicação virtual, telefonia e transmissão de imagem, que permitam a todo cidadão se comunicar entre si e com as autoridades públicas em todos os níveis. Este sistema poderá receber a adesão do mercado sob as regras definidas por lei.

Sendo uma proposta aberta, muito teria o que agregar a crítica e as sugestões dos prezados leitores, o que antecipadamente agradeço.

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